Historia das heresias: MARCIÃO, ele que começou a propagar que o Deus do velho testamento é diferente do Novo Testamento

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Historia das heresias: MARCIÃO, ele que começou a propagar que o Deus do velho testamento é diferente do Novo Testamento.


MARCIÃO: Uma Voz Discordante*
Marcião (85-160 d.C.)
Introdução
         Desde seu gênesis o Cristianismo trouxe em seu bojo paradoxos dos mais variados tipos. Nunca faltaram as grandes polêmicas que se estendiam por anos até que a minoria acabava sendo calada ou extirpada da vida da Igreja.
         Ainda nos primeiros anos vemos as dificuldades cada vez mais crescentes de se manter uma coesão no que concerne a mensagem única do cristianismo. Já nas correspondências paulinas podem se perceber a facilidade com que os princípios e ensinos do evangelho tomavam inúmeras direções, em sua grande maioria contrastante.
         Mas toda esta multiformidade do Cristianismo não é uma característica negativa, ao contrário, é o que tornou o Cristianismo uma religião transcendental em seu alcance multicultural, possibilitando atravessar não apenas as fronteiras geográficas, mas, principalmente, as barreiras temporais. Deste modo, em todos os tempos o Cristianismo teve que enfrentar não apenas seus adversários externos, mas invariavelmente seus embates internos, que o obrigava a periodicamente revisar seus preceitos e dogmas.
         Tudo isto torna a História do Cristianismo algo fascinante e enriquecedor para qualquer um que se disponha a debruçar-se sobre ela. A História do Cristianismo é tudo, menos, sonolenta ou enfadonha. Caminhar na estrada da História do Cristianismo é se surpreender a cada curva, pois sempre acabamos por descobrir novas peculiaridades e nuanças.
         Neste pequeno opúsculo traremos à tona um personagem do segundo século que ousadamente defendeu ideias contraditórias ao consenso da maioria e que por esta razão acabou atiçando a ira dos detentores da verdade cristã. Marcião, ainda que classificado por muitos como herege, fez pelo Cristianismo muito mais do que centenas de outros que apenas repetiram como papagaios os conceitos que lhes foram passados. O posicionamento e questionamento de Marcião possibilitaram ao Cristianismo uma profunda e ampla autoanálise da qual emergiu-se um Cristianismo mais maduro e consistente.
Origem
         Marcião (81-160) nasceu em Sinope, no Ponto, às margens do Mar Negro, filho do bispo cristão do lugar, o qual o expulsou, ainda que não saibamos o real motivo. Rico dono de muitos navios. Transferiu-se para Roma por volta de 139, filiou-se à congregação romana, destinando uma quantia volumosa em dinheiro às suas obras de benemerência. [1]
         Entretanto, seu esforço no sentido de fazer com que a Igreja romana voltasse ao que ele considerava o Evangelho de Cristo e de Paulo resultaram na sua própria excomunhão, por volta de 144. Tendo a esta altura atraído muitos seguidores, fundou uma igreja separada. [2]
         Relativamente pequeno é nosso conhecimento sobre Marcião visto que seus trabalhos foram destruídos, ou perdidos, ou ambos. O que é conhecido da sua vida, obra e teologia são encontradas nas obras de seus opositores Justino Mártir (110-165), Ireneu (120-202), Epifanio (ca. 315-403) principalmente Tertuliano, [3] que escreveu uma grande obra refutando as teses marcionitas, por volta de 207 d.C., e que se por um lado se reconhece sua grande habilidade e valor retórico, também se percebe um grau acentuado de arcaísmo intransigente. A obra a qual se refere Tertuliano denomina-se “Antíteses” e que possivelmente devia se constituir em duas partes: uma histórica e dogmática, destinada a demonstrar como o autêntico Evangelho havia sido alterado, e outra exegética, para explicar o texto do Novo Testamento.
Epítome de Seus Conceitos
         Marcião foi o mais sério e prático dentre os primeiros críticos do Cristianismo. Cheio de energia e zelo, ainda que inquieto, rude e muitas vezes excêntrico. “Marcião não era o tipo que devia ser considerado respeitador de tradições. Antes valia o contrário a seu respeito”.[4] Ele antecipou em muitos séculos as grandes perguntas relacionadas à moderna crítica bíblica e ao cânon. Ele antecipou a oposição do racionalismo ao Antigo Testamento e às chamadas Epístolas Pastorais e o debate concernente ao Jesus Histórico.
A base das ideias de Marcião é muito semelhante a dos chamados gnósticos, sintetizadas no livro “Antíteses”, onde quis mostrar os contrastes entre o Velho e o Novo Testamento. A sua grande questão foi a de relacionar um com o outro, pois sendo um anti-legalista entendia que o Evangelho tinha sido distorcido, tornando-se necessário recolocá-lo na simplicidade e verdade que Jesus havia anunciado. Marcião insistia que a Igreja havia obscurecido o Evangelho por procurar harmonizá-lo com as idéias do Velho Testamento.
Ele e seus posteriores seguidores afirmavam que Jesus Cristo trouxera uma concepção de um Deus de amor, enquanto que o Deus do Velho Testamento era vingativo, criador de um mundo mal e da lei judaica, portanto devia ser rejeitado pelos cristãos; o Deus de amor nada tinha a ver com a lei, existindo uma diferença absoluta entre justiça e misericórdia, entre ira e graça.
Para ele não era pela fé na morte de Jesus que o homem é salvo, mas pela fé num Deus revelado por Jesus e isso era a negação de um dos aspectos básicos da linha tradicional da Igreja e com certo cunho modalista, afirmava que Jesus Cristo é outro nome do Deus bom. O “deus do Velho Testamento” conseguiu a sua crucificação, só que ele não morreu, tendo havido apenas uma ilusão. Para aqueles que insistem na separação entre alma e corpo, colocando o aspecto físico como mal e o espiritual como bom, é quase inevitável cair numa ideia docetista a respeito da natureza humana de Cristo.
         O que mais encantava Marcião era o espírito de liberdade que ele encontrou nos escritos e ensinos do apóstolo Paulo, sendo que considerava maravilhosa a carta aos Gálatas. A sua concepção do cânon bíblico ficou muito simples: só o Evangelho de Lucas, eliminando dele o relato do nascimento e infância de Jesus, as dez cartas de Paulo sem as pastorais, rejeitando o resto do Novo Testamento e todo o Velho Testamento. [5]
         Ainda que muitos confundem as ideias de Marcião com o movimento Gnóstico, ambos permaneceram como linhas paralelas. [6] A evolução destas suas ideias deu origem ao movimento marcionista que cresceu e perdurou por muitos séculos. Vestígios desse movimento foram encontrados em vários lugares no século sexto, abrangendo uma área geográfica da Mesopotâmia até a França, e o número de livros polêmico mostra quão difundido estavam suas idéias. [7]
Reações e Consequências
          O posicionamento e questionamento de Marcião provocaram por parte da Igreja uma resposta imediata. Esta resposta pode ser vista através de algumas ações alavancadas pelos líderes cristãos e que ainda hoje permanecem inalteradas. [8]
O próprio estabelecimento de um Cânon do Novo Testamento tornou-se indispensável, visto que Marcião havia estabelecido o seu próprio Cânon. Os Evangelhos foram os primeiros a atingir reconhecimento geral. É importante notar que cedo os Cristãos decidiram incluir mais do que um Evangelho em seu Cânon, como uma resposta direta ao desafio de Marcião que incluía apenas Lucas. Pelo fim do segundo século, o núcleo do Cânon estava estabelecido: os quatro Evangelhos, Atos, e as epístolas de Paulo, incluindo as chamadas pastorais, rejeitadas por Marcião. Os livros mais curtos do Cânon, não alcançaram consenso até uma data bem mais tarde. Isto ocorre apenas na segunda metade do quarto século onde um consenso completo foi alcançado sobre quais os livros que deveriam ser incluídos no Novo Testamento. [9] “Historicamente, a decisão da Igreja, de formar o cânone, estabelecendo uma norma para seu ensino e doutrina, determinou o fim da história da Igreja Antiga e o início da história da Igreja Católica Primitiva”. [10]
         Um outro desdobramento direto dos posicionamentos de Marcião é a elaboração do Credo Apostólico. Seu texto básico foi estabelecido, provavelmente em Roma, cerca do ano 150. E foi então chamado de "símbolo de fé."[11]
O símbolo de fé era um meio de reconhecimento, tal como um símbolo que um general dava para um mensageiro de modo que o recipiente podia reconhecer um mensageiro verdadeiro. Igualmente, o "símbolo" estabelecido pelos líderes cristãos deveria distinguir os crentes verdadeiros dos que seguiam outras diretrizes, particularmente o Gnosticismo e Marcionismo.
Um dos principais usos deste símbolo estava no batismo, onde era apresentado ao candidato uma série de três perguntas:
 Você crê que Deus é o onipotente Pai?
 Você crê em Jesus Cristo, o Filho de Deus, que nasceu do Espírito Santo e da virgem Maria, que foi crucificado sob Pôncío Pilatos, e morreu, e ascendeu outra vez no terceiro dia, vivendo de dentre os mortos, e ascendido aos céus, está assentado à direita do Pai, e virá outra vez para  julgar os vivos e os mortos?
Você crê no Espírito Santo, na igreja sagrada, e na ressurreição do corpo?
Uma análise mais de perto claramente mostra que este Credo é direcionado contra os Marcionitas. Primeiro, o pantokrator  é uma palavra Grega, usualmente traduzida como "onipotente", e literalmente como aquele que "tudo controla". A idéia aqui é que Deus controla tanto o mundo espiritual, quanto o mundo material sem qualquer distinção entre eles, que era uma tese de Marcião.
         O parágrafo mais extenso do credo é o procedimento (origem) do Filho. Isto porque era precisamente em sua Cristologia que Marcião se diferenciava mais amplamente da igreja. Primeiro nos é dito que Cristo Jesus é o "Filho de Deus”. Outras versões antigas dizem "Filho do mesmo" ou "Seu Filho." Jesus é o Filho do Deus que controla acima deste mundo e acima de toda realidade. O nascimento "de Maria a virgem" não é primeiramente para acentuar o nascimento virginal, completamente claro, mas para melhor assegurar o fato de que Jesus nasceu e não apenas se fez simplesmente aparecer na terra, como Marcião afirmava. A referência a Poncio Pilatos não é simplesmente para colocar a culpa no governador Romano, mas para melhor datar o evento como que insistindo no fato de que isto foi um fato histórico, um evento datável. E, além disso, era negado que Jesus "foi crucificado… morto, e ascendeu outra vez”. Finalmente, é asseverado que este mesmo Jesus voltará "para julgar", uma noção que Marcião jamais poderia aceitar.
          A "santa igreja" é assegurada porque Cristãos estavam começando a subestimar a autoridade da igreja. E a "ressurreição do corpo" é uma rejeição final a qualquer noção de que a carne é má ou de que não haverá nenhuma conseqüência.
Conclusão
         Dos primeiros movimentos internos do Cristianismo com certeza este protagonizado por Marcião foi um dos maiores em sua repercussão. Separou o Cristianismo de suas raízes históricas de modo radical. Ousou tocar numa doutrina fundamental do Cristianismo, a encarnação real de Jesus; não apenas desautorizou o Antigo Testamento, como teve a ousadia de colocar Deus no banco dos réus.
         Tudo isto pode parecer inverossímil nestes nossos dias, mas em seu contexto histórico próprio havia muitas justificativas para protesto de tal sorte. A voz destoante de Marcião atendia na verdade a um anseio crescente contra toda espécie de legalismo, que estava agonizantemente tentando sobreviver incubado dentro do Cristianismo.
         É muito cômodo “crucificarmos” Marcião, o difícil mesmo é termos a mesma ousadia que ele teve de ir contra a maioria e defender suas idéias. O Cristianismo com certeza não seria o que é e bem provavelmente não chegaria tão longe quanto chegou sem os “Marciãos” que exigem uma auto-depuração continua.
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Reflexão Bíblica
http://reflexaoipg.blogspot.com.br/
 
Referências Bibliográficas
Dreher, Martin N. Coleção História da Igreja, v.1, A Igreja no Império Romano, ed. Sinodal, São Leopoldo, 2002.
Boutruche, Robert e Lamerle, Paul. Judaísmo e Cristianismo Antigo de Antíoco Epifânio a Constantino, ed. Pioneira, São Paulo, 1987.
Almeida, Joãozinho Thomaz de, As Marcas de Cristo na História dos Homens, edição do autor, Rio de Janeiro, 1989, pp.79-80.
Walker, Williston. História da Igreja Cristã, v.1, ed. ASTE, São Paulo, 1967.
Harnack, Adolf Von. History of Dogma, v. I, Published by Boston, Little, 1901, pp. 266-281.
Carrigan, Cky J. Marcion and Marcionite Gnosticism, 1996, mídia eletrônica:http://ontruth.com/marcion.html
Bradshaw, Robert I. Marcion: Portrait of a Heretic, 1998, mídia eletrônica:http://www.robibrad.demon.co.uk/Marcion.htm
The Catholic Encyclopedia, Volume IX, Online Edition Copyright © 2003 by Kevin Knight.
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*Pesquisa apresentada em cumprimento às exigências da disciplina do Prof. Eduardo Hoornaert - de Pós-Graduação Latu Sensu - Formação de Docentes em História do Cristianismo
[1] Segundo Tertuliano ele fez à comunidade Romana uma oferta de duzentos mil sesterces logo depois sua chegada. Esta oferta extraordinária de 1400 libras (7000 dólares), uma soma enorme para aqueles dias, podem ser atribuídos aos primórdios de uma fé entusiástica, entretanto segundo informações o dinheiro foi voltado para ele depois sua ruptura com a Igreja.
[2] “Justino (Apol. 1. 26) em 150 relata que a pregação de Marcião tinha se espalhado em "kata frita genos anthropon" e pelo ano 155, os Marcionitas já eram numerosos em Roma (Iren. III. 34)”. Harnack, Adolf Von. History of Dogma, v. I, Published by Boston, Little, 1901, [nota nº 1], mídia eletrônica: http://www.gnosis.org/library/marcion/hnts.html#1
[3] Quintus Septímius Forens Tertulianus nasceu em Cartago, filho de um centurião, educado na lei romana e nas artes liberais, já importante advogado quando aceitou o cristianismo, não constando que tenha sido ordenado para a vida religiosa mas, mesmo assim, recebeu o encargo de instruir os catecúmenos. Ao utilizar o latim, língua do povo, tornou-se fundamental para a preservação de um cristianismo mais puro. Exerceu grande influência sobre Cipriano e mais tarde suas obras marcariam profundamente Agostinho. Era freqüentemente injusto para com seus oponentes e incoerente consigo mesmo. Apesar disto, o intenso fervor espiritual que demonstrava tornava sempre admirável o que escrevia.
[4] Dreher, Martin N. Coleção História da Igreja, v.1, A Igreja no Império Romano, ed. Sinodal, São Leopoldo, 2002, p.35.
[5] “A criação de um Novo Testamento constitui um fato importante, não apenas porque Marcião conferiu à sua teologia um fundamento enraizado nas Escrituras, mas ainda porque parece ter sido o primeiro a reunir em uma coleção normativa os escritos de origem apostólica”. Boutruche, Robert e Lamerle, Paul.Judaísmo e Cristianismo Antigo de Antíoco Epifânio a Constantino, ed. Pioneira, São Paulo, 1987, p.157.
[6] Harmack afirma: “MARCIÃO não pode ser classificado dentre os Gnósticos no sentido estrito da palavra”. Depois enumera uma série de argumentos que demonstram esta sua afirmativa. Harnack, Adolf Von, Op. cit. “E. Furguson identificado três diferenças significativas entre a teologia de Marcião e do Gnosticismo: Marcião fez da revelação escrita seu padrão para verdade; Ele encorajou a organização da igreja, e ele rejeitou a especulação e alegoria. Furguson, E. "Marcion" in Evangelical Dictionary of Theology, edited by Walter Elwell (Grand Rapids: Baker, 1984), 686.
[7] Os mais evidentes Marcionitas foram: Prepo, Lucanus (Assírio), e Apelles. Eles fundamentaram o sistema do mestre de modo a atenuar a antipatia ao Judaísmo. Ambrosius, um amigo de Origenes também foi um Marcionita, ainda que  posteriormente o renunciou.
Na Itália, Egito, Palestina, Arábia, Síria, Ásia Menor e Pérsia, igrejas Marcionitas se estabeleceram, esplendidamente organizada, com seus próprios bispos e o manual da disciplina eclesiástica, com um culto e serviço da mesma natureza daquelas que subseqüentemente se estabeleceu a Igreja Católica.
[8] Constantino proibiu a liberdade dos cultos público ou particulares dos Marcionitas, por contrariarem os dogmas do Cristianismo, que iniciava sua escalada rumo à religião oficial do Estado. O código de Teodosiano os menciona unicamente uma vez. Mas eles existiram no quinto século quando Theodoret contado vantagem “converter” mais de um mil deles, e o Conselho de Trullan de 692 pensado neles faz provisão à reconciliação dos Marcionitas.
[9] “Floyd Filson escreveu “De todos os eventos que apressaram a formação do cânon do Novo Testamento, nada teve mais influencia do que a ação de Marcião. Não podemos dizer que Marcião criou a idéia de um cânon do Novo Testamento, mas ele teve uma  influência certamente grande." Filson, Floyd V. Which Books Belong in the Bible? (Philadelphia: Westminster, 1956), 113.
[10] Dreher, Martin N. Op. cit., p. 36.
[11] Isto é mantido por estudiosos de que o Credo Apostólico foi elaborado pela Igreja Romana em oposição ao Marcionismo (cf. F. Kattenbusch, "Das Apost. Símbolo.", Leipzig, 1900; A.C. McGiffert, " Credo Do Apóstolo", Nova Iorque, 1902).

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