Ebionitas Primitivos, perseguidores de Paulo, e judaizantes na igreja dos gentios.
Por meio das
sobreviventes fontes do cristianismo primitivo temos conhecimento de um grupo
de “cristãos[1]” que eram denominados Ebionitas. A origem do nome não é certa,
pois duas teorias são conhecidas: (1) o grupo teria esse nome por causa do seu
fundador Ebion; (2) em função da característica de pobreza do grupo, herdando
do hebraico a palavra “ebyon” como descrição da identidade do grupo.
A primeira teoria
teria nascido com Tertuliano, que supunha que “que toda heresia começa com um
herege que pode ser nomeado” (ERHMAN, Bart, Evangelhos Perdidos. pp.152). No
décimo quarto capítulo do documento chamado On The Flesh of Christ, Tertuliano
fala sobre a possibilidade de inferioridade de Cristo, por ter sido ele feito
inferior aos anjos no texto de Hebreus. Nesse contexto, enquanto ainda
considera as possibilidades, Tertuliano diz: “Essa opinião seria bem confortável
para Ebion, que defende que Jesus é um mero homem, e nada mais que um
descendente de Davi” (On The Flesh of Christ, cap.14; cf. cap.18 e 24 –
Tertuliano também faz descrições sobre Ebion no terceiro capítulo da sua obra
Aginst all Heresies).
Já a segunda parece
ter sido endossada por Orígenes, que fala que os Ebionitas “derivam a apelação
de pobres para o próprio nome deles (uma vez que Ebion significa pobre em
hebraico)” (De Principiis, Livro 4, Cap.1). Entretanto, Orígenes também
apresenta sua opinião com certo sarcasmo, pois sabendo do significado da
palavra hebraica ele os satiriza por dizer ou que seu nome deriva da pobreza da
lei (Against Celsus, Livro 2, Cap.1) ou que deriva da pobreza do seu intelecto
(De Principiis, Livro 4, Cap.1). Essa descrição ofensiva também foi adotada por
Eusébio de Cesaréia, que no encerramento do capítulo que trata dos Ebionitas
diz: “Assim, em conseqüência geral de tal curso, também receberam seu nome, o
nome de ebionitas, manifestando a pobreza do seu intelecto. Pois é assim que os
hebreus chamam ao pobre” (CESARÉIA, Eusébio, História Eclesiástica. Livro 5,
cap. 27).
Muito embora a
segunda possibilidade tem sido normalmente aceita como a que representa a
verdade sobre o grupo, a razão certamente não é pela pobreza da lei ou do
intelecto dos seus adeptos, mas à sua postura de simplicidade ante a vida.
QUEM ERAM OS
EBIONITAS?
Os ebionitas eram um
grupo de judeus que se entendiam seguidores de Cristo (ERHMAN, Bart, Evangelhos
Perdidos. pp.153). No cristianismo primitivo dois grupos de judeus cristãos são
claramente identificados: os que eram praticamente ortodoxos, mas do ponto de
vista prático falhavam na busca por seguir toda a lei, e aqueles que adotavam
uma cristologia deturpada. Os ebionitas normalmente são incluídos no segundo
grupo (EHRMAN, Bart, The Ortodox Corruption of the Scripitures. PP.50), mas
sabe-se que, como judeus que eram (ou até mesmo adeptos do judaísmo), também
buscavam guardar toda a lei.
Eusébio de Cesaréia
reconhece a categorização dos ebionitas no segundo grupo de judeus cristãos
primitivos, e sobre eles fala: “O espírito de perversão, porém, sendo incapaz
de mover alguns em seu amor a Cristo, mais ainda os considerando suscetíveis a
suas impressões em outros aspectos, persuadiu-os para seus próprios propósitos.
Esses são devidamente chamados ebionistas pelos antigos, como os que abrigavam
opiniões inferiores e simplórias a respeito de Cristo” (CESARÉIA, Eusébio,
História Eclesiástica. Livro 5, cap. 27)
Os ebionitas tinham
duas características marcantes: se diziam pobres (no aspecto financeiro) e eram
vegetarianos. Como defesa do seu voto de pobreza, o evangelho que eles usavam
dizia: “[Jesus] lamentava a atitude daqueles que, vivendo nas riquezas e nos
prazeres, não davam coisa algum aos pobres. Recriminava-os dizendo que haveriam
de dar contas por não terem compadecido daqueles a quem deviam amar como a si
mesmos, nem sequer quando os viam mergulhados na miséria” (Recognitiones 2, 29
– Documento Pseudoclementido do inídio do terceiro século). O que se destaca
nesse texto é que:
(1) Em primeiro lugar essa sentença não é
encontrada nos evangelho canônicos e parece um adendo ebionita ao evangelho que
dispunham
(2) Em segundo lugar, há claras influências
interpretativas sobre quem é o próximo que Jesus teria ensinado a amar como a
si mesmos. Não temos evidências nos evangelho canônicos de que o próximo, para
Cristo, eram apenas os pobres.
Para defender seu
vegetarianismo, os ebionitas alteraram os evangelhos canônicos em duas
ocasiões:
(1) Quando eles descrevem João Batista como
alguém que se alimentava de gafanhotos e mel silvestre. No Evangelho dos
Ebionitas lê-se: “Seu alimento, diz ele, era mel silvestre, de gosto semelhante
ao do maná, como se fosse bolo preparado em azeite” (Epifânio, Heresias,
30.13).
(2) E na ocasião em que os discípulos
pergunta a Cristo onde ele teria interesse em comer o Cordeiro Pascal: “Onde
queres que preparemos para comeres a Páscoa? E que Ele, da sua parte,
respondeu: Por acaso, desejei comer carne convosco nessa Páscoa?” (Epifânio,
Heresias, 30.22)
Entretanto, também
sabemos que os Ebionitas eram judeus zelosos com a prática da lei, como judeus
que eram, ou se diziam. Por outro lado, mantinham o domingo como dia central da
fé, como os cristãos primitivos também entendiam. O mesmo Eusébio reconhece
isso: “Também observavam os sábado e outras disciplina dos judeus, exatamente
como eles, mas por outro lado também celebravam o Dia do Senhor como nós, para
comemorar a ressurreição” (CESARÉIA, Eusébio, História Eclesiástica. Livro 5,
cap. 27).
O mais interessante
sobre esse grupo é que eles clamavam para si mesmo o serem representantes da fé
primitiva dos apóstolos originais de Cristo (ERHMAN, Bart, Evangelhos Perdidos.
pp.153) e que como os primeiros seguidores de Cristo, ele trabalhavam para
preservar não apenas a identidade e os costumes judaicos (EHRMAN, Bart, The
Ortodox Corruption of the Scripitures. PP.51), mas a verdade que Cristo teria a
defender, pois Ele veio para cumprir a lei e os profetas (Qual o texto
autêntico do Evangelho de Mateus? – cf.
Mt.5.17).
COMO ELES ENTENDIAM A
SALVAÇÃO?
Em uma forma de
cristianismo similar a dos judaizantes combatidos por Paulo em Gálatas, os
ebionitas “pregavam que, para seguir Jesus, era necessário ser judeu” (EHRMAN,
Bart, O que Jesus disse? O que Jesus não disse?. pp.166), até por que, para os
ebionitas, o segredo de Cristo era para ele e para os seus, isto é, para os
judeus. Isso significava que o homem deveria ser circuncidado, e que todos
deveriam respeitar o Sabá a dieta de kosher (ERHMAN, Bart, Evangelhos Perdidos.
pp.153). De alguma forma, apregoavam a salvação pela identificação prática dos
princípios judaicos, ou seja, a salvação era conquistada pessoalmente pela
obediência. Eusébio de Cesaréia defende exatamente isso: “Entre eles a
observância da lei era totalmente necessário, como se não pudessem ser salvos
só pela fé em Cristo” (CESARÉIA, Eusébio, História Eclesiástica. Livro 5, cap.
27).
Quando observamos a
partir desse ponto de vista, precisamos nos perguntar qual a validade da morte
de Cristo então? Para os ebionitas, a morte de Cristo era o cumprimento final
de sua obra messiânica recebida da parte de Deus, mas ela era apenas
relacionada ao cumprimento das profecias do Antigo Testamento. Não há valor
redentor, pois a verdadeira fé (segundo eles) era a identificação com a prática
judaica.
Entretanto, eles não
acreditavam que eram necessários os sacrifícios de animais, pois o sacrifício
de Cristo teria sido perfeito nesse sentido. Epifânio, de quem herdamos grande
parte do texto do Evangelho dos Ebionitas, cita uma frase supostamente dita por
Cristo, não encontrada em nenhum dos evangelhos canônicos, no qual demonstra a
necessidade de se encerrar os sacrifícios de animais: “Vim abolir os
sacrifícios e se não deixardes de oferecer sacrifícios, não se afastará de vós
a minha ira” (Heresias, 30, 16).
Dessa forma, podemos
compreender que, no que se refere a salvação, não eram necessários os
sacrifícios rituais do judaísmo exigidos pela Lei, pois o sacrifício de Cristo
teria sido suficiente. Por outro lado, a salvação pessoal dependida da
identificação com os costumes judaicos e da obediência da Lei, como exigidos
pela Lei. Assim, a salvação é uma aquisição pessoal exemplificada por Cristo.
COMO ELES ENTENDIAM A
CRISTO?
A essa pergunta
Eusébio responde: “Eles o consideravam homem simples e comum, justificado
apenas por seus progressos na virtude e seu nascimento de Maria por geração
natural” (CESARÉIA, Eusébio, História Eclesiástica. Livro 5, cap. 27). Luis Berkhof,
quando fala sobre os ebionitas diz que eles “o [Cristo] consideravam como
simples homem, filho de José e Maria” (BERKHOF, Louis, Teologia Sistemática,
pp.281). Ou seja, ele era “um ser humano real, de carne e osso como todos nós,
que nasceu como o filho mais velho da união sexual de seus pais” (ERHMAN, Bart,
Evangelhos Perdidos. pp.154).
Muito embora fosse um
homem como qualquer outro, ele teria sido “qualificado em seu batismo para ser
o Messias, pela descida do Espírito Santo sobre ele” (BERKHOF, Louis, Teologia
Sistemática, pp.281). Esse é o aspecto central da doutrina ebionita: Cristo
como adotado filho de Deus em seu batismo. Para que isso ficasse evidente, no
evangelho que dispunham encontra-se o seguinte relato do batismo:
“Veio também Jesus e
foi batizado por João. E quando saiu da água, abriram-se os céus e João viu o
Espírito Santo, em forma de Pomba, baixar e penetrar nele. Veio uma voz do céu
e disse: ‘Tu és o meu filho, o amado; em ti encontro minha alegria’. E de novo:
‘Eu hoje te gerei’. No mesmo instante uma grande luz iluminou o lugar. E como
está escrito, João, ao ver Jesus, lhe pergunta: ‘Quem és tu?’ Ouviu-se de novo
uma voz do céu que lhe disse: ‘Este é o meu filho, o amado; nele me regozijo”
(Epifânio, Heresias, 30.13)
Nesse trecho temos
clara evidência da doutrina ebionita: Jesus como adotado como Filho na ocasião
do batismo. Alguns fatos interessante poderiam ser demonstrados:
(1) João viu o espírito penetrar em Jesus
em forma de pomba. Talvez essa seja uma forma a aludir o que de fato as
escrituras ensinam sobre o assunto, mas a descrição parece sugerir que o texto
que dispunham era composto com os olhos em algum texto canônico;
(2) A repetição da identificação de Jesus
como filho nesse texto, sugere que a preferência ebionita para a ocasião da
adoção de Jesus como Filho de Deus é de fato o batismo;
(3) A expressão “Eu hoje te gerei” nesse
contexto confirma as duas suposições anteriores: seja quem for o autor, ele tem
em mãos mais de um evangelho canônico e defende o adocionismo exatamente nessa
ocasião. A razão para se defender isso é que a expressão em referência é a
leitura variante encontrada em Lucas 3.22, adotada a parir de Salmos.2.7, texto
usado para a coroação de um Rei.
Os ebionitas não
adotavam a noção da preexistência de Cristo, mas o consideravam como “o Messias
judeu, enviado pelo Deus judeu para o povo judeu, em cumprimento das escrituras
judaicas” (ERHMAN, Bart, Evangelhos Perdidos. pp.153). E como ser humano normal
que era o que o distinguia de todas as outras pessoas “foi o fato de que ele
guardou a Lei de Deus perfeitamente, e por isso foi o homem mais íntegro sobre
a face da terra. Assim, Deus o escolheu para ser seu filho e confiou a ele uma
missão especial: sacrificar-se pelo bem de outros. Jesus foi, então, para a
cruz, não como punição pelos seus próprios pecados, mas pelos pecados do mundo,
um sacrifício perfeito em cumprimento de todas as promessas de Deus para seu
povo, os judeus, nas Escrituras Sagradas. Como sinal de aceitação do sacrifício
de Jesus, Deus o ressuscitou dentre os mortos e o glorificou, elevando-o ao
Paraíso” (ERHMAN, Bart, Evangelhos Perdidos. pp.154).
Sobre a origem de
Jesus, Epifânio diz que eles o entendiam não como “gerado de Deus Pai, mas
criado como um dos arcanjos, sendo, contudo, superior a eles. Declaram que ele
tem domínio sobre os anjos e sobre tudo o que foi criado pelo Todo-Poderoso”
(Heresias, 30.16).
Essa declaração de
Epifânio nos auxilia a compreender que mesmo os ebionitas, como adocionistas,
também tinha suas divergências, uma vez que não é possível que um homem comum
também fosse criado como um arcanjo. De alguma forma, é bem provável que as
heresias primitivas exercessem influência umas às outras. Assim, a noção mais
ariana de Cristo também parece ter passado por algum grupo ebionita do período
de Epifânio.
O QUE ELES
CONSIDERAVAM ESCRITURA?
No período do
surgimento do ebionismo não se tinham definido o Canon das escrituras e debates
para a busca da validade de documentos cristãos estavam fluindo por todo o
mundo antigo. Os ebionitas não eram exceção a esse fato: Eles também alegavam
serem representantes da verdade, por que entendiam que as escrituras, como
fonte para a verdade, de modo diferente da ortodoxia cristão nos primeiros
séculos.
Como os ebionitas
eram judeus ou judaizados, era óbvio que “consideravam a Bíblia hebraica (o
Velho Testamento) como a Escritura por excelência” (ERHMAN, Bart, Evangelhos
Perdidos. pp.155). É por isso que eram reconhecidos pela pregação da obediência
irrestrita da Lei. Mas, além disso, para os ebionitas o VT era compreendido
como a fonte correta para conhecer as intenções de Deus para seu povo.
Talvez, por essa
razão, os ebionitas consideravam Paulo como um herege, um inimigo da fé. Ele
representava um auto-proclamado apóstolo que teria vindo ao mundo para deturpar
a fé, até por que, Paulo insistia que a circuncisão não era necessária para os
cristãos. Ehrman, sobre a relação entre Paulo e os ebionitas, diz: “Na verdade, para eles Paulo estava errado
não apenas com relação a alguns detalhes menores: ele era o arquiinimigo, o
herege que desviou muitos ao insistir que uma pessoa pode ser correta com Deus
em guardar a Leu e ao proibir a circuncisão, o ‘sinal do pacto’, para os
seguidores” (ERHMAN, Bart, Evangelhos Perdidos. pp.155). Entretanto, Eusébio
parece ter conhecimento mais abrangente desse assunto, pois segundo o seu
relato sobre os ebionitas, todas as epístolas dos apóstolos deviam ser
rejeitadas: “Esses, de fato, por um lado
pensavam que todas as epístolas dos apóstolos deviam ser rejeitadas,
chamando-os de apóstata da lei, mas por outro lado, usando apenas o evangelho
segundo os Hebreus, consideravam os outros de pouco valor” (CESARÉIA, Eusébio,
História Eclesiástica. Livro 5, cap. 27).
Sobre que parte do NT
os ebionitas aceitavam há relativa divergência: Eusébio chama o documento
aceito por eles de Evangelho segundo os Hebreus; Epifânio diz que eles o
chamavam de Evangelho dos Ebionitas, dos Doze, ou Evangelho Hebraico, mas
acredita que era uma versão do Evangelho de Mateus (Heresias, 30.3); o que se
sabe com relativa certeza é que o documento utilizado pelos ebionitas não era o
atualmente conhecido Evangelho dos Hebreus, embora tivesse semelhanças com ele.
Seja qual for o documento, é bem provável que Epifânio esteja correto em sua
defesa, uma vez que todos os evangelhos mencionados se parecem com alguma forma
deturpada dos evangelhos canônicos. (ERHMAN, Bart, Evangelhos Perdidos. pp.156)
Para compreender esse
dilema, recorremos às declarações de Epifânio sobre o texto ebionita, que
segundo ele teria sido adquirido de um grupo de ebionitas. Sobre o documento,
ele diz: “No evangelho usado pelos ebionitas, denominado ‘segundo Mateus’ –
que, no entanto, não é íntegro e completo, mas adulterado e mutilado” (Heresias,
30.13).
No que se refere a
mutilação, os ebionitas não possuíam os dois primeiros capítulos do Evangelho
de Mateus. Epifânio diz que o evangelho deles tinha início com a história de
João Batista. Ehrman entende que isso acontecia por que eles rejeitavam, tanto
a preexistência como a idéia do nascimento virginal. (ERHMAN, Bart, Evangelhos
Perdidos. pp.155). Entretanto, mesmo o início desse suposto evangelho tem suas
divergências com os evangelhos canônicos: “Aconteceu que nos dias de Herodes,
rei da Judéia, João começou a batizar com um batismo de penitência no rio
Jordão. Dizia-se que ele era descendente do sacerdote Aarão e filho de Zacarias
e de Isabel” (Heresias, 30, 13). A noção do tempo parece em conformidade com os
evangelhos canônicos, contudo, é claramente um acréscimo interpretativo o tipo
de batismo usado por João Batista e sua ascendência.
No que se refere à
adulteração, já temos citado alguns exemplos: A questão de quem é o próximo, a
alimentação de João Batista, a rejeição de Jesus em comer o cordeiro pascal e a
cena do Batismo. Porém, para que fique evidente, gostaria de observar a cena do
batismo novamente:
“Veio também Jesus e
foi batizado por João. E quando saiu da água, abriram-se os céus e João viu o
Espírito Santo, em forma de Pomba, baixar e penetrar nele. Veio uma voz do céu
e disse: ‘Tu és o meu filho, o amado; em ti encontro minha alegria’. E de novo:
‘Eu hoje te gerei’. No mesmo instante uma grande luz iluminou o lugar. E como
está escrito, João, ao ver Jesus, lhe pergunta: ‘Quem és tu?’ Ouviu-se de novo
uma voz do céu que lhe disse: ‘Este é o meu filho, o amado; nele me regozijo”
(Epifânio, Heresias, 30.13)
Os evangelho
canônicos apresentam que a voz vinda do alto teria se pronunciado apenas uma
única vez, mas, em cada um dos relatos essa voz teria dito algo diferente:
“Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo” (Mt.3.17); “Tu és o meu Filho
amado, em ti me comprazo” (Mc.1.11); “Tu és o meu Filho amado, em ti me
comprazo” (Lc.3.22). Observe que em Mateus a voz fala com a multidão (Este é),
enquanto os dois outros registros se dirigem ao Filho (Tu és). O que me deixa
um pouco espantado é o fato de que a voz também tenha dito “Eu hoje te gerei”,
leitura variante para o final do verso 22 de Lucas 3 (D, ita, (itb), itc, itd,
itff2, itl, itr1, Diogeneto, Justino, (Clemente σύ ἀγαπητός), Methodius, Orígenes, Juvencus, (Ambrosiaster),
Faustus-Milevis, Hilario, Constituição Apostólica, Tyconius, Mss
LatinosAugustinho).
Ou seja, na tentativa
de tentar compreender o que de fato a voz teria dito, o evangelho dos ebionitas
teria inserido cada uma versões canônicas em um só relato. Como a tentativa de
harmonizar os evangelhos é relativamente antiga (cf. Diassetaron), não é de se
estranhar que algo desse tipo houvesse acontecido aqui. O que é surpreendente é
que, quem quer que tenha sido o autor, teve acesso aos documentos canônicos e
não apenas os rejeitou, mas os adaptou à suas convicções.
OS EBIONITAS ERAM UM
GRUPO EXPRESSIVO?
No que se refere ao
alcance da doutrina ebionita nos primeiros séculos não podemos afirmar com
certeza sua expansão geográfica ou expressão ideológica. O fato de que autores
Latinos e Gregos os terem confrontado sugere que não estavam limitados à região
da Palestina. Já o fato de que não são pouco os pais da igreja (Inácio, Irineu,
Eusébio, Tertuliano, Hipólito, Orígenes, Epifânio) que desprendem energia para
confrontá-lo sugere que os ebionitas eram hereges que mereciam confrontação.
Entretanto, como a quantidade de informação nos pais da igreja é bem pequena,
sugere que eles era um grupo ideológico de pouca expressão. Já, a não
sobrevivência de nenhum dos seus documentos sugere que o ebionismo foi uma
deturpação do cristianismo que não sobreviveu ao tempo (muito embora exista um
ebionismo moderno sobrevivente – sobre esse falaremos mais em um outro artigo).
Ou seja, o ebionimo,
ainda que pudesse ser encontrado em outras regiões e ter sido acessível a
judaizados que liam grego, não representa um grande grupo do cristianismo
primitivo. Ao que as evidências indicam, é bem provável que fossem pequenos
grupos espalhados em algumas regiões do mundo e ainda assim, um grupo de pouca
expressão.
[1] Passo a
apresentar os ebionitas como “cristãos” entre aspas por razões óbvias: ainda
que se considerem como tal, ou que alguns dos comentaristas citados nesse texto
os considere como tal, não os entendo como cristãos.
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