O Maior Problema da
Interpretação
Nos últimos post
tenho enfatizado o quanto uma metodologia hermenêutica adequada é fundamental
para a Teologia. No post Escravidão, Escritura e Hermenêutica tentei demonstrar
que existem alguns pressupostos hermenêuticos que não são adequados para a
interpretação bíblica, mesmo quando são defendidos por cristãos zelosos e
apaixonados pela escritura. Nesse artigo, pretendo continuar falando sobre
hermenêutica, e gostaria de demonstrar o que acredito ser o maior problema da
hermenêutica bíblica.
De modo geral, o
livros que tratam da hermenêutica bíblica apresentam métodos organizados, de
fácil entendimento que levam o estudante da hermenêutica à teologia e
eventualmente ao púlpito, entretanto ignoram o que acredito ser o maior
problema da interpretação: o intérprete. É ele quem traz para o texto seus
pressupostos, experiências, preferências e limitações. É ele quem determina as
correlações que determinados textos devem fazer, que prioriza textos em
detrimento de outros, que determina a ordem com que diferentes textos devem ser
interpretados e em última análise é quem determina a metanarrativa que pretende
adotar para analizar textos. Uma vez que a
Reforma Protestante colocou a escritura nas mãos dos cristãos, e que os
mesmos entendem que tem liberdade para ler e interpretar as escrituras sem as
restrições da regula fidei ou da tradição histórica da igreja, o intérprete
acredita que pode colocar-se como árbitro final da verdade. É por isso que não
é incomum nos diálogos sobre as diferenças de opinião a expressão “Eu não vejo
assim” é tão recorrente.
Dessa forma, eu
acredito que foco de atenção inicial do intérprete não deveria ser os aspectos
literários, contextuais, gramaticais, sintáticos ou históricos relacionados a
um determinado texto, mas os pressupostos e preferências pessoais que o
intérprete carrega consigo, de tal modo que possa analisar o texto preparado
para identificar onde e como seus pressupostos e preferências o afetam na
tarefa de entender o sentido do texto.
Em outras palavras,
eu estou defendendo que o intérprete desenvolva sua autopercepção teológica a
ponto de que tenha plena consciência de suas preferências antes de iniciar a
análise de um texto, para que encontrando no texto sagrado algo que desafie,
questione ou rejeite suas preferências, o intérprete esteja preparado para
valorizar a escritura em detrimento de suas preferências pessoais.
Portanto, nesse
artigo eu gostaria de sugerir alguns pontos de atenção que o intérprete cristão
deve considerar antes mesmo de abrir a escritura para estuda-la. Esses
princípios, entretanto, serão importantíssimos especialmente quando ele abrir
as escrituras para estudar e interpretá-la. Tendo a crer que tais princípios
ajudarão o intérprete a ler as escrituras com a predisposição de priorizar a
escritura em detrimento das preferências pessoais e com isso valorizar a
integridade das escrituras, bem como a veracidade de seus ensinos. Vale
mencionar que nem todos os exemplos apresentados nesse artigo serão de natureza
primariamente hermenêutica (visto que o mesmo seria potencialmente recheado de
ad hominen), mas todos são relacionados ao temas que abordamos abaixo.
Sobre a Distinção
entre Opinião e Verdade
Em primeiro lugar, é
importante que o intérprete saiba que somente as escrituras podem ser
classificadas como verdade absoluta. Todas as opiniões sobre as escrituras são
apenas as melhores abstrações que o intérprete pode inferir a partir das
escrituras. Existem critérios técnicos (seja de natureza, gramatical,
sintática, literária, contextual, teológica, histórica, e assim por diante) que
serão usados pelo intérprete para validar determinada consideração
hermenêutica, mas ele deve estar ciente que esse exercício passa por suas
preferências e pressupostos. Se o intérprete cristão consegue diferenciar a
veracidade das escrituras e suas opiniões sobre a verdade expressa nas
escrituras, ele deixará de condenar desnecessariamente aqueles que dele
discordam [1].
Aqui Norman Geisler e
Albert Mohler nos servem como exemplo negativo. Quando Michael Licona publicou
o livro The Resurrection of Jesus de caráter apologético, Licona intentava usar
as ferramentas da historiografia para analisar os evangelhos para defender a
ressurreição de Cristo como fato histórico. No processo ele concluiu que Mat
27:52-53 deveria ser entendido como uma imagem apocalíptica que atesta a
expectativa futura dos cristãos, mas não como um evento histórico. Sabendo
disso, o apologeta Norman Geisler e o teólogo Albert Mohler saíram em defesa da
inerência das escrituras, afirmando que o posicionamento de Licona viola tanto
a inerrância como a inspiração das escrituras. Geisler chegou a ponto de
publicamente lembrar Licona de que, em um assunto similar, Robert Gundry havia
sido expulso da Evangelical Theological
Society (ETS), e que se ele não afirmasse a historicidade de Mat 27.52-53 ele
poderia seguir o mesmo caminho (veja todo o diálogo entre Geisler e Licona
aqui). O problema nesse caso é que tanto Geisler como Mohler atribuíram suas
próprias interpretações o status de inspirada, e por consequência entenderam
que opiniões distintas (ou contraditórias, como eles preferem ver), seriam em
última análise uma forma de violação das escrituras.
O que tanto Mohler e
Geisler (e tantos outros) não perceberam é que o assunto é de natureza
hermenêutica, como observado por vários expectadores desse diálogo público.
Vários autores conservadores também se posicionaram em defesa de Licona, não
por concordar com a abordagem ou com as conclusões que ele defende, mas por
entenderem que o caso em nada tinha a ver com a doutrina da inspiração ou da inerrância. Um documento público foi
redigido por Licona para demonstrar exatamente esse ponto, e o mesmo foi
assinado por teólogos como W. David Beck, James Chancellor, William Lane Craig,
Jeremy A. Evans, Gary R. Habermas, Craig S. Keener, Douglas J. Moo, J. P.
Moreland, Heath A. Thomas, Daniel Wallace, Edwin M. Yamauchi (veja o documento
assinado aqui), que jamais poderiam ser chamados de liberais ou violadores da
inspiração das escrituras. Outros autores, como Paul Copan, Craig Bloomberg,
Bill Warren, fizeram o mesmo por meio de outras vias também públicas. Em outras
palavras, apesar de não concordar com as conclusões de Licona, esses autores
entendem que o debate é de natureza primariamente hermenêutica, e que as
conclusões de Licona em nada afetam a doutrina na inspiração. Entretanto, ao
associarem suas opiniões teológicas pessoais à verdade da escritura, Geisler e
Mohler acabaram defendendo que suas opiniões eram tão inerrantes quanto a própria
escritura e condenando Licona e tantos outros que deles discordam.
Ou seja, ao ignorar
que existe certa distinção entre nossas opiniões e a verdade nas escrituras,
nós corremos o risco de rotularmos nossos irmãos de hereges simplesmente por
discordarem de nossas opiniões, e quando assim procedemos, nos colocamos em pé
de igualdade com as escrituras e atribuímos infalibilidade às nossas
interpretações. É por isso que o intérprete é o maior problema da
interpretação.
Sobre o Conhecimento
Prévio
Em segundo lugar, é
importantíssimo que o todo estudante das escrituras saiba que estuda as
escrituras com uma série de informações presumidas. Tais informações fazem
parte do conhecimento prévio do intérprete, que o influencia a perspectiva com
a qual ele aborda um determinado texto da escritura. De acordo com Scott Duvall
e Daniel Hayes o conhecimento prévio “se refere a todas as nossas noções e
conhecimentos pré concebidos que trazemos para o texto, e que foram formuladas,
consciente ou inconscientemente, antes mesmo de estudarmos um texto em
detalhes” (Gransping God’s Word, 89). Eles também afirmam que o conhecimento
prévio “é formado tanto por influências negativas como positivas, e podem ser
corretas ou não” (p.89). Na grande maioria das vezes, nosso conhecimento
preconcebido está equivocado, e por isso que o intérprete deve estar atento ao
modo como aborda o texto das escrituras. O fato é que todos nós somos
influenciados por questões culturais, sociais, familiares, e de modo consciente
ou não, nós trazemos todas essas influências para a tarefa de interpretar as
escrituras.
Isso significa que
sem a devida percepção das influências culturais, sociais que afetam o
conhecimento prévio do intérprete, e a devida ponderação sobre as escrituras no
seu contexto literário e histórico, o intérprete pode transpor do texto
princípios práticos para o dia a dia hoje que ignoram o texto e supervalorizam
seu contexto. Isso acontece, por que é o intérprete quem traz para o texto suas
preferências e percepções da realidade, e é ele quem “extrai” do texto o que
ele acredita ter encontrado lá. São essas decisões hermenêuticas que fazem do
intérprete tão perigoso para a teologia. Sem um preparo adequado e sem o
necessário esforço para investigar um texto, o intérprete pode ser muito
perigoso para a reflexão teológica e para a comunidade da fé. E esse é o grande
perigo, pois existem pessoas que acreditam que seu conhecimento prévio e
abordagem estão sempre corretos. Kevin Vanhoozer denomina essa atitude de
orgulho, e afirma que esse tipo de orgulho “nos encoraja a pensar que nós
alcançamos o sentido correto de um texto muito ante de termos realizado o
esforço apropriado para encontrá-lo. O orgulho não aprende, ele sabe” (Is There
a Meaning in this Text?, p.462). No livro “Espiral Hermenêutica,” Grant Osborne
afirma que “o problema é que o nosso entendimento prévio torna-se conhecimento
preconcebido muito facilmente, um conjunto de argumentos à priori que limita a
Escritura e faz com que ela se conforme com esses conceitos pré-definidos [pelo
intérprete].” (Hermeneutical Spiral, p.29).
E quem faz isso
(conscientemente ou não), não é o método que o estudante usa para interpretar
as escrituras, mas o próprio intérprete. É por isso, que o intérprete é o maior
problema da interpretação.
Sobre as Limitações
do Conhecimento
Em terceiro lugar, o
intérprete deve estar ciente da limitação do seu conhecimento. De todo
conhecimento teológico disponível no universo, nós temos acesso apenas a uma
pequena parte do mesmo, e eventualmente essa ignorância é a causa da diferença
de opinião sobre a interpretação de determinado texto. E em alguns casos, essa
ignorância transcende àquelas evidências conhecidas pela academia, afinal
alguém em algum lugar, algum dia pode descobrir algo novo que irá mudar completamente
o modo como entendemos o texto do NT.
Exemplo disso pode
ser encontrado no historicamente recente desenvolvimento da lexicografia do NT.
A partir do momento que o NTGrego voltou a ter primazia no estudo teológico no
mundo pós-reforma, a literatura nele encontrada foi comparada e contrastada com
a literatura grega clássica. Um dos grandes problemas desse exercício é que
existem pouquíssimos paralelos sintáticos e léxicos entre eles, afinal os
textos grego clássicos estão distante historicamente dos texto do NT. Essa
falta de relação entre esses documentos levou muitos teólogos a defenderem que
o texto do NT havia sido escrito em um idioma espiritual, sem qualquer relação
com o grego como idioma conhecido nas obras do grego clássico. Aliás, o teólogo
luterano Richard Rothe (1799–1867) chegou a defender que o idioma do NT deveria
ser propriamente reconhecido como “linguagem do Espírito Santo” (Zur Dogmatik,
238), exatamente por sua falta de relação com o grego conhecido através da
literatura grega clássica.
Essa pressuposição
fez parte de grande parte da reflexão lexicográfica e influenciou largamente a
visão que o lexicógrafos tinham da natureza do idioma do NT, especialmente em
função dos termos encontrados no NT que não eram encontramos em nenhum lugar na
literatura grega clássica. Partindo do ponto que o grego do NT era um idioma
distinto, o exercício léxico do NT era feito basicamente de modo paralelo ao
grego clássico, em especial quando lidava com hapax legomenon. Um exemplo
clássico disso é o Thayer’s Greek New Testament Lexicon publicado em 1896 por
Joseph Henry Thayer, como uma versão revisada e expandida do léxico Clavis Novi
Testamenti Philologica de Christian Gottlob Wilke publicado em 1840. Thayer
teria investido 25 anos nesse projeto e o resultado do seu esforço foi recebido
com louvor pela comunidade acadêmica. Entretanto, ele foi produzido debaixo da
pressuposição de que o NT era um idioma distinto do grego clássico, uma ideia
que poucos anos mais tarde teria sido completamente abandonada pela academia do
NT.
Fundamental para essa
mudança, foi a descoberta e publicação dos Manuscritos de Oxirrinco, uma
coleção de papiros gregos que continha textos em grego do primeiro ao quarto
século da era Cristã. Em 1901 Gustav Adolf Deissmann publicou o livro Bible
Studies: Contributions Chiefly from Papyri and Inscriptions to the History of
the Language, the Literature, and the Religion of Hellenistic Judaism and
Primitive Christianity (1901 e 1910) no qual demonstrou a similaridade entre o
idioma encontrado nesses papiros e o idioma do NT. Posteriormente também publicou o Light from
the Ancient East: the New Testament Illustrated by Recently Discovered Texts of
the Graeco-Roman World (1910) que ajudou a aprimorar a definições inadequadas
de muitos termos gregos do NT. Com isso, Deissman demonstrou indiretamente que
o Thayer’s Lexicon estava completamente obsoleto em seus pressupostos e análise
(muito embora ainda seja largamente usado na reflexão teológica contemporânea).
O que ficou evidente
depois dessa descoberta é que o grego do NT era deveras similar àquele
encontrado no grego vernacular de Oxirrinco, e isso mudou completamente o modo
como o texto do NT era lido e entendido. Exemplo disso é o léxico Vocabulary of
the Greek Testament, publicado por James Hope Moulton e George Millian em 1930,
que usou como base de sua pesquisa basicamente os textos encontrados em
Oxirrinco e diversas inscrições também encontradas no Egito. A contribuição de
Deissman para a compreensão da natureza do idioma do NT exigiu uma nova
abordagem lexicográfica, como àquela encontrada na obra de Moulton-Milligan.
Essa pequena mudança no entendimento da natureza do idioma do NT teve um
impacto brutal na interpretação das escrituras.
Em outras palavras, a
“ignorância” de Joseph Henry Thayer era relacionada à evidências não conhecidas
no período de preparação e publicação de sua obra, mas no fim das contas isso
fez pouca diferença. Afinal, sua obra hoje é analisada a partir da perspectiva
de que seus pressupostos e métodos estão ultrapassados. Nem sempre nossa
ignorância deve-se ao fato de desconhecermos a evidência disponível, mas o fato
é que todos somos em algum nível ignorantes em diversos dos temas do estudo da
teologia, seja em relação a natureza do idioma, da história da lexicografia, da
sintaxe dos idiomas originais, da relação entre os testamentos e assim por
diante.
Nesse ponto, D.A.
Carson nos serve como excelente exemplo. Carson, no artigo “Unity and Diversity
in the New Testament,” defende que apesar das diferentes e divergentes
abordagens à teologia do NT, é possível manter ao mesmo tempo a unidade de
temas e a diversidade de abordagens em relação ao NT. Para demonstrar isso,
Carson cita uma série de autores e obras que exemplificam o caso, sem
entretanto explicar o desenvolvimento das diferentes abordagens e suas
conclusões. De modo resumido ele afirma: “Não é meu objetivo identificar o
surgimento desses [diferentes] desenvolvimentos. Suas raízes se estendem até o
Iluminismo, e meu conhecimento a respeito do desenvolvimento deles é suficiente
apenas para me garantir que eu não tenho o conhecimento detalhado da história
necessário para desenredá-los” [Carson, “Unity and Diversity in the New
Testament: The Possibility of Systematic Theology, IN: Carson, Woodbridge,
eds., Scripture and Truth (Baker: Michigan, 1992), 65]. Se um dos mais
importantes teólogos do NT publicamente confessa suas limitações relacionadas à
origem das diferentes teorias e teologia do NT, que sou eu pra pensar que já
estudei a teologia do NT suficiente?
Ou seja, é
fundamental que o estudante de teologia, em especial o iniciante, tenha como
pressuposto sua própria ignorância em assuntos relacionados a temas que estuda.
Assumir essa santa ignorância antes de teologizar é fundamental para o labor
teológico, pois não apenas humaniza o teólogo como também o mantém humilde.
Essa predisposição intelectual ajudará o estudante de teologia a manter-se
humilde diante da excelsitude do conhecimento de Deus.
Sobre a Importância
da Comunidade da Fé
Em quarto lugar, o intérprete
deve estar ciente de que Teologia se faz em comunidade. Não existem teólogos
verdadeiramente cristãos desassociados da comunidade da fé. Eles podem ser
teólogos, filósofos, exegetas e muito mais, mas não podem ser teólogos
cristãos. O teólogo cristão parte do pressuposto de que toda verdade é verdade
de Deus, mas que a verdade do evangelho (Col 1.5) e a doutrina dos apóstolos
(At.2.42) foi confiada e confinada à comunidade da fé. Ele entende que a
comunidade da fé é a coluna e fundamento da verdade (1Tim 3.15), edificada
sobre o fundamento dos apóstolos e profetas (Ef.2.20), e que ele é em última
análise um servo de Deus, à serviço dela. É por isso que a reflexão teológica
que faz, o labor teológico que executa, o empenho hermenêutico que realiza não
pode ser feito à parte da igreja.
Baseado nesses
princípios, eu gosto de manter um grupo de amigos, que amam mais ao Senhor do
que a mim, com quem busco conselhos, orientações e até mesmo correção. Eu tenho
o hábito de enviar artigos controvertidos para essas pessoas lerem, antes mesmo
de publicar no Teologando. Em geral, eu escolho amigos que imagino a priori não
concordarão com o que escrevi, na esperança de que possam me oferecer
observações e correções valiosas. Eu faço isso por que temo os efeitos de uma
ideia nociva para a comunidade da fé sendo propagada pelos meus artigos. É por
isso, que alguns artigos nunca foram publicados, enquanto outros levaram anos
para chegar lá. Um exemplo disso é o meu artigo sobre Halloween, que passou por
inúmeras revisões e demorou três anos para ser finalmente publicado. Há quem
diga que no artigo há muito que melhorar, mas que o viu em seu estágio
embrionário sabe o quanto esse artigo melhorou.
Em nossos dias nós
encontramos muitos lobos solitários perdidos na internet, teólogos de mídia
social, que apesar de conseguirem fazer agudas críticas teológicas em 140
caracteres sem se quer terem lido um livro de 140 páginas, não tem qualquer
respeito pela comunidade da fé. São homens e mulheres que amam mais suas
opiniões do que a verdade de Cristo, que amam mais suas opiniões do que a
unidade do corpo de Cristo. Esses não se importam em dividir a igreja e
promulgar seus conhecimentos contrários à doutrina do apóstolos. Dificilmente
esses que não tem respeito pelo Corpo de Cristo, tenham respeito pelo Cabeça da
Igreja.
Por isso é
fundamental que nosso labor teológico seja feito em comunidade, em parceria com
outros cristãos.[2] Até por que, uma interpretação que seja exclusiva de um
indivíduo, desconhecida na academia cristã, desconhecida na história da igreja,
dificilmente poderá ser uma representação da verdade expressa no texto. Como
aprendiz de teólogo eu sou mais um exegeta em treinamento do que um teólogo
propriamente dito, e por isso, tenho diversas limitações. Quando o assunto é
teologia histórica, contemporânea e até mesmo sistemática, meu conhecimento e
treinamento não são tão afiados como de outras pessoas. Eu preciso da ajuda
deles nesses assuntos, e não é à toa que procuro ler sobre esses assuntos
escritos por pessoas cujo conhecimento da área transcende o meu. Por outro
lado, como exegeta (e crítico textual) em treinamento, eu posso auxiliar meus
irmãos que tem sua especialização em outras áreas do conhecimento teológico. É
por isso que escrevo no Teologando, para servir pastores, estudantes de
teologia e cristãos comprometidos com o ensino e aprendizado das escrituras
(veja mais aqui).
Em outras palavras, o
pastor depende do trabalho do teólogo, o teólogo do exegeta, o exegeta do
crítico textual e todos da escritura e da comunidade da fé. Dependemos uns dos
outros e servimos uns aos outros, em prol da verdade, a favor da comunidade
para a glória de Deus, por que teologia se faz em parceria com outros cristãos
e para a comunidade da fé. Fazendo isso, o intérprete terá condições de
refletir em comunidade, aprender com outros, ser corrigido e com isso ensinar
as escrituras com mais clareza e seriedade.
Sobre a influência da
Hamartiologia na Hermenêutica
Por fim, o intérprete
deve estar ciente de que sua mente ainda luta contra a verdade das escrituras,
por que o pecado não é apenas um problema moral, social e relacional, o pecado
é também um problema epistemológico. Albert Mohler afirma que “a grande crise
epistemológica se inicia na queda. As consequências da queda em nossa
capacidade de pensar foram nada menos do que devastadoras. Infelizmente, isso
não é claramente evidente para nós, por que agora nós estamos tão distantes do
conhecimento adequado de nós mesmo que nós nem sabemos quão pervertido nosso
raciocínio é” (Piper, Mathis, Thinking. Loving. Doing., 54). Mohler também
lista quatorze efeitos negativos da queda no intelecto humano, como a
ignorância, distração, esquecimento, preconceito, perspectiva defeituosa,
fatiga intelectual, inconsistência, falha em se chegar à conclusão correta,
apatia intelectual, dogmatismo, orgulho intelectual, vã imaginação, má
comunicação e conhecimento parcial (pp.56-8). Após listá-las e explicar cada
uma delas, ele afirma: “Todos esses efeitos noutéticos da queda estão atrelados
à nossa vontade. Esses efeitos influenciam não apenas nossas atividades
intelectuais, mas também o modo como nossas atividades intelectuais funcionam e
influenciam outros aspectos da nossa vida” (p.58).
No livro The Noetic
Effects of Sin, Stephen Moroney sugere que o Conhecimento de Deus é o mais
evidente objeto de possível distorção do pecado nas faculdades cognitivas do
homem, baseado no simples fato de que o pecado é a manifestação de todas as
formas contrárias ao próprio Deus. Moroney defende que tal interferência do
pecado na mente do homem não se limita às fontes que usa, mas também às
influências que recebe e aos julgamentos que faz. Em outras palavras, da mesma
forma que a vontade luta contra a pureza, a mente luta contra a verdade divina.
É por isso que ele afirma: “A realidade que o pecado distorce nosso pensamento
lembra-nos não apenas da necessidade da autocrítica, a abertura a correções dos
outros, mas também da nossa necessidade de humildade. Se tomarmos os efeitos
noutéticos do pecado à sério, então somos confrontados com a perspectiva
humilhante que este lado do céu algumas de nossas crenças, em particular nossas
crenças sobre Deus, estão equivocadas” (The Noetic Effects of Sin, 449). É por
isso que o conselho de Moroney é tão importante:
“Nossa finitude e
natureza caída deve aumentar nossa humildade epistêmica. Nosso conhecimento, em
especial o conhecimento de Deus, é limitado e contém distorções. No entanto, a
autorevelação de Deus para nós nessa vida e a perspectiva da nossa futura
glorificação e da comunhão com Deus na vida futura, deve nos ajudar a manter a
esperança epistêmica. Nós sabemos algumas verdades agora e algum dia vamos
conhece-las plenamente” (How Sin Affects Scholarship: A New Model, 451).
Vale dizer
entretanto, que nem sempre as distorções do nosso conhecimento serão fruto
direto da influência do pecado em nossa capacidade cognitiva. Entretanto, a
simples percepção de que tal influência existe deve nos manter humildes e
esperançosos diante do infindável conhecimento de Deus.
Conclusão
Como tentei
demonstrar acima acima, o maior problema da interpretação é o intérprete. É ele
quem tem que entender distinção entre a verdade das escrituras e suas opiniões
pessoais e aprender a valorizar a escritura em detrimento de suas opiniões
pessoais; é ele que tem que reconhecer o conhecimento prévio que carrega
consigo e lutar ativamente para identificar sua influência no seu labor
teológico; é ele que tem que reconhecer as limitações de conhecimento teológico
que tem e batalhar para conscientemente vencer tais limitações tornando-se um
leitor inveterado das escrituras e de obras de teologia; é ele quem tem que
reconhecer que a verdade divina pertence à comunidade da fé e não aos
indivíduos, e labutar para ao mesmo tempo influenciar e ser influenciado por
ela; é ele tem que lutar contra os efeitos do pecado em sua reflexão teológica,
contra o orgulho do conhecimento, a soberba da rejeição da correção e trabalhar
para manter-se humilde diante de Deus e da comunidade da fé. Em outras
palavras, o maior problema da interpretação somos eu e você.
[1] Não me entenda
mal, eu acredito que existem aspectos inegociável da fé cristã e minha
tendência é assumir o kerigma cristão como cerne da teologia. A mensagem dos
apóstolos em Atos e a subsequente ênfase apostólica na centralidade da cruz de
Cristo sugerem que essa era a prioridade teológica da igreja primitiva. Em
outras palavras, todas as doutrinas que tocam a doutrina da cruz fazem parte do
cerne teológico cristão, como a depravação do homem, o sacrifício substitutivo
de Cristo, sua ressurreição e assim por diante. Agora, a extensão de tais
doutrinas seriam consideradas secundárias visto que as evidências
neo-testamentária parecem não atribuir mesma ênfase a esses assuntos, embora
todos eles sejam mencionados. Por exemplo, a depravação da homem pós-queda é
inegável ante ao relato das escrituras, mas sua extensão já aparece de modo
secundário. O mesmo pode ser dito da extensão do sacrifício substitutivo de
Cristo, cuja veracidade é estampada por toda escritura, mas sua extensão é
ainda assunto de debate teológico na história da igreja. O mesmo pode ser dito
sobre a eleição e a justificação, que são doutrinas inegáveis do novo
testamento, mas que são foco de debate teológico ainda nos nossos dias.
[2] É importante que
se diga que fazer teologia em comunidade, ou em parceria, não significa
necessariamente estar no mesmo lugar fazendo a mesma coisa ao mesmo tempo.
Grande parte dos meus diálogos teológicos são realizados com os livros que leio
e seus autores. Eu faço anotações, escrevo perguntas, faço pesquisa para
verificar a validade das afirmações que fazem, sem sair de casa e sem falar com
alguém (in persona).
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