Jesus Cristo é um plágio de Inanna (Ishtar)?
Inanna é a divindade astral suméria que representa o planeta Vênus. Os acadianos (e assírios-babilônicos mais atrasados) a chamaram de Ishtar. Existe um corpo muito grande de literatura cuneiforme suméria e acadiana em que Inanna-Ishtar é proeminente. A imagem primária que emerge destes textos, além dela como encarnação de Vênus, é a de uma deusa do amor e da sexualidade, mas em alguns ela é, em vez disso, uma deusa da guerra. O Código de Hamurabi, por exemplo, a chama de “a dama da batalha e do conflito”. [1]
Tanto para os sumérios quanto para os acadianos, ela era a deusa principal em seus respectivos panteões. As contrapartes mais próximas de Inanna-Ishtar a oeste são a Astarte cananéia e as últimas deusas da Grécia e Roma, Afrodite e Vênus. Devido ao eventual sincretismo dos sumérios e acadianos, as tradições relativas a Inanna-Ishtar são extremamente complicadas. Por várias tradições, ela é conhecida como:
- A filha do deus do céu, An;
- A filha do deus da lua Nanna-Sin (assim irmã do deus do sol, Utu-Shamash);
- A filha de Enlil ou Ashur.
Similarmente, Inanna-Ishtar foi associada com mais de um marido, alternadamente: Zababa de Kish, Ashur, An, Dumuzi (Tammuz, para os acadianos). Embora seu principal centro de culto fosse Uruk, ela era adorada em muitas outras localidades, cada uma das quais lhe dava epítetos e características bastante diversas [2].
Richard Carrier, ativista do ateísmo, descreve Inanna e sua suposta história de “crucificação” e “ressurreição” assim:
“O único caso, que eu sei, de um deus pré-cristão sendo crucificado e ressuscitado é Inanna (também conhecida como Ishtar), uma deusa suméria cuja crucificação, ressurreição e fuga do submundo é contada em tabuletas cuneiformes c. 1500 a.C., atestando uma tradição muito antiga.” [3]
Aqui está um resumo do mito “Descida de Ishtar” da Encyclopedia of Religion, editada pelo mitólogo e cientista da religião Mircea Eliade:
“Inanna, a rainha do céu, procurou estender seu poder sobre o submundo, governado por sua irmã, Ereshkigal. Como no texto acadiano, Inanna desce através de sete portas, em cada uma remove um artigo de vestuário ou regalia real até, depois de passar pela sétima porta, estar nua e impotente. Ela é morta e seu cadáver pendurado em um gancho. Através de um estratagema planejado antes de sua descida, ela é revivida, mas não pode retornar para cima, a menos que possa encontrar um substituto para tomar seu lugar. Ela sobe novamente, acompanhada por uma força de demônios que a devolverá à terra dos mortos se ela falhar. Depois de permitir que dois possíveis candidatos escapassem, ela vem a Erech, onde Dumuzi, o pastor rei que é seu marido, parece estar se alegrando com o seu destino. Ela coloca os demônios sobre ele, e depois que ele escapa várias vezes, ele é capturado, morto e levado para o submundo para substituir Inanna.” [4]

A Descida foi lentamente reunida durante um período de mais de 50 anos – os quatorze tabletes e fragmentos (foto ao lado) datam de cerca de 1500 a.C. e foram descobertos e começaram a ser escavados no final do século XIX. Depois de descobertos, foram decifrados, traduzidos e publicados várias vezes no século XX [5]. A parte relevante é:
“… Nua e curvada, Inanna entrou na sala do trono.Ereshkigal levantou-se de seu trono.Inanna se dirigiu para o trono.A Annuna, os juízes do submundo, a cercaram.Eles a julgaram.Então Ereshkigal fixou em Inanna o olho da morte.Ela [Ereshkigal] falou contra ela [Inanna] a palavra da ira.Ela soltou contra ela o grito de culpa.Ela bateu nela.Inanna foi transformada em um cadáver,Um pedaço de carne podre,E foi pendurada em um gancho na parede…” [6]
Outras traduções diziam: “A mulher doente foi transformada em um cadáver, o cadáver foi pendurado em um prego…” [7] ou “a mulher aflita foi transformada em um cadáver. E o cadáver foi pendurado em um gancho” [8]. Outros resumos usam a terminologia: “… a transformaram em um cadáver, e penduraram seu corpo em uma estaca…” [9]; Kramer também usa as palavras “… transformada em um cadáver, que é então pendurado em uma estaca…” [10].

A história continua com a “ressurreição” de Inanna na Encyclopedia of Religion (artigo “Inanna”):
“Ereshkigal prende sobre ela [Inanna] os seus ‘olhos da morte’, transforma-a em um cadáver, e pendura seu corpo em uma estaca. O servo de Inanna, preocupado após três dias de sua ausência, cria criaturas que descem com materiais revivificantes. Eles a trazem de volta à vida e ela re-ascende à terra, acompanhada por demônios assustadores que vagam com ela de cidade em cidade na Suméria. Quando ela retorna para Uruk, encontra seu amante Dumuzi não lamentando sua situação no submundo, mas na verdade comemorando. Ela coloca atrás dele os demônios, que depois de uma longa perseguição o alcançam, o torturam e o arrastam para baixo, para o inferno.” [11]
Como o mito diz que o servo de Inanna ficou preocupado quando percebeu que ela já estava desaparecida há três dias, os céticos forçam um paralelo com a morte de Jesus por três dias. No entanto, como Inanna foi considerada filha da lua, estes três dias de sua ausência podem estar associados ao “lado escuro da Lua”, tradicionalmente, os últimos três dias do ciclo lunar, imediatamente antes da Lua Nova, começando uma fase da “criação” (a Lua Nova), seguida pelo crescimento (a Lua Crescente e a Lua Cheia), uma diminuição (a Lua Minguante) e, finalmente, a “morte” (os três noites sem lua, ou seja, a lua escura) [12]. Logo, não há paralelo com os três dias da morte de Jesus, que estavam ligados à crença judaica de que uma pessoa só poderia ser considerada efetivamente morta depois de três dias, como mostra o relato da ressurreição de Lázaro (João 11) [13].
O texto realmente relevante da “Descida de Inanna” é este:
“Ereshkigal, a Rainha do Inferno… ficará satisfeita.Ela vai te oferecer um presente.Pergunte-lhe apenas sobre o cadáver que pendurou no gancho na parede.Um de vocês irá polvilhar o alimento da vida nele.O outro borrifará a água da vida.Inanna vai surgir…Ereshkigal disse: ‘Fale então! O que você deseja?’Eles responderam: ‘Desejamos apenas que pendure o cadáver no gancho na parede’.Ereshkigal disse: ‘O cadáver pertence a Inanna’.Eles disseram: ‘Se pertence a nossa rainha, se pertence ao nosso rei, é isso que desejamos’.O cadáver lhes foi dado.O kurgarra [uma criatura ‘nem macho nem fêmea’] aspergiu o alimento da vida no cadáver.A galatur [a criatura ‘nem macho nem fêmea’] aspergiu a água da vida no cadáver.Inanna se levantou…” [14]
Há muitas variações deste mito, mas sua importância reside no caso de amor entre Dumuzi-Tammuz, que representa o ciclo vegetativo anual de morte e regeneração, e Inanna-Ishtar, a incorporação da força geradora na natureza. Em suas relações, ela fecunda o ciclo de crescimento da primavera, e isso veio a ser ritualizado em uma cerimônia anual em que o rei (representando Dumuzi-Tammuz) entrou em um hieros gamos ou “casamento sagrado” com uma prostituta do templo, representando Inanna-Ishtar, e, assim, simpaticamente trouxe a regeneração para a terra. A popularidade e difusão geográfica desse mito e sua ritualização são atestadas em Ezequiel 8:14, onde o profeta condena a prática seguida por algumas mulheres de Jerusalém de lamentar a “morte de Tamuz” [15].
Não há nada aqui sobre uma “Inanna crucificada”; ela nem sequer foi adorada como tal na religião suméria. Inanna foi adorada como uma deusa do amor, fertilidade e sexualidade, e/ou uma deusa da guerra. Ela nunca foi conhecida como uma “divindade crucificada”. A história de Inanna (1500 a.C.) data de pelo menos 1000 anos antes de a “crucificação” se tornar conhecida e usada. A morte dos criminosos por crucificação começou com os persas (séculos 7-6 a.C.) e foi seguida pelos gregos e romanos na época em que Jesus viveu. Muitas pessoas morreram por crucificação antes e depois de Jesus. E isso não é suficiente para afirmar que Ele é um plágio de todas as pessoas que receberam a mesma pena de morte. De qualquer forma, Inanna, que é simplesmente um mito, não morreu crucificada. Além disso, ninguém que tenha morrido por crucificação, ressuscitou – além, é claro, de Jesus, cuja morte por crucificação e ressurreição são atestadas por diversas fontes extra bíblicas e argumentos em favor da Sua ressurreição corporal (veja isso, isso e isso).
A morte de Cristo por crucificação ocorreu por volta de 30 d.C. na terra, não no “submundo”, e é considerada um fato histórico bem estabelecido (veja aqui: Jesus Além da Bíblia: Um Homem da História), não um mito como a história de Inanna-Ishtar.
Ainda segundo o mito, a deusa, cansada por ter atravessado o céu e a terra e ainda viajado por lugares distantes como o Elam, deitou-se no jardim de Shukallituda, no qual um jardineiro a espiava do outro extremo. Quando Inanna adormeceu, o jardineiro “possuiu-a, beijou-a e regressou ao extremo do seu jardim”. Ao acordar na manhã seguinte, a deusa ficou horrorizada e, para vingar-se de quem a possuiu, como não o encontrou, transformou todas as águas em sangue. [16]
Isso não pode ser um paralelo com a praga que Deus enviou por meio de Moisés ao Egito porque a história bíblica tem comprovação histórica, enquanto a história de Inanna-Ishtar é só mito: Há sinais das pragas (incluindo a praga da água transformada em sangue) nas ruínas da antiga cidade de Avaris e no chamado “papiro de Ipuwer”, que data de cerca de 1200 a.C., encontrado no Egito no início do último século, levado para o Museu Arqueológico Nacional em Leiden na Holanda sendo decifrado por A.H. Gardiner em 1909. O Dr. Rodrigo Pereira da Silva, arqueólogo bíblico, mostrou a réplica deste papiro no programa do Jô. Veja aqui.
Inanna foi descrita em um hino babilônico escrito no início do segundo milênio como uma deusa insaciável: “Sessenta e sessenta homens, um após o outro, podem desfrutar de seu sexo: eles ficam esgotados, mas Ishtar não!”. [17]
Há, portanto, muitas diferenças entre a crença cristã na morte e ressurreição de Jesus Cristo e a mitologia de Inanna que Richard Carrier ignora (provavelmente de modo intencional):
- Inanna é morta no submundo (não na terra) sendo golpeada pelos “olhos da morte”;
- Seu cadáver é então pendurado em um gancho, ou prego ou estaca (não em uma cruz);
- Inanna não experimentou uma ressurreição física. Ela saiu do submundo graças às forças demoníacas e, então, enviou em seu lugar Dumuzi (se ela não enviasse outra pessoa em seu lugar, teria que voltar para lá). Era central para as religiões de mistérios o ciclo anual da vegetação, em que a vida é renovada a cada primavera e morre a cada inverno. E esse era o cerne da mitologia de Inanna e Dumuzi.
Jesus, por Sua vez, foi pregado na cruz estando ainda vivo; três horas depois, morreu. E foi ressuscitado corporalmente três dias depois (Mateus 27-28; João 19-20; 1 Coríntios 15; etc.). Podemos ver que as diferenças são gritantes entre uma história e outra. Portanto, Jesus não é um plágio de Inanna.
Notas de rodapé:
[1] Encyclopedia of Religion [Enciclopédia da Religião], “Inanna”, volume 7, pp. 145-146.
[2] Ibid., p. 145.
[3] CARRIER, Richard. “Kersey Graves and the World’s Sixteen Crucified Saviors” [Kersey Graves e os Dezesseis Salvadores Crucificados do Mundo], 2003.
[4] “Dying and Rising Gods”, volume 4, pp. 525-526.
[5] “The Discovery and Decipherment of ‘The Descent of Inanna’ by Kramer in Inanna” por Wolkstein/Kramer, pp. 127-135.
[6] “Descent of Inanna” [Descida de Inanna], traduzido em Inanna por Wolkstei/Kramer [1983], p. 60.
[7] Kramer, History Begins at Sumer [1959], p. 163.
[9] Encyclopedia of Religion, “Inanna”, volume 7, p. 146.
[10] History Begins at Sumer [1959], p. 158.
[11] “Inanna”, volume 7, p. 146.
[14] “Descent of Inanna” [Descida de Inanna], traduzido em Inanna por Wolkstein/Kramer [1983], pp. 64, 67.
[15] Encyclopedia of Religion, “Inanna”, volume 7, p. 146.
[16] KRAMER, S. N. A história começa na Suméria. Portugal: Publicações Europa-América, 1997, p. 98.
[17] Ibid., p. 92.
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