Pequena História da Língua Hebraica
1 – Um Panorama Geral
Chaim Rabin
Por cerca de mil e trezentos anos, desde a conquista da Palestina, até
após a guerra de Bar-Kohba, os judeus falaram o hebraico. Passaram então a
falar outras línguas por mais de dezesseis séculos, até que o hebraico voltou a
ser novamente falado na Palestina, há cerca de noventa anos.
As causas da interrupção da utilização do hebraico como língua falada
devem ser encontradas no fato de que, a partir do Exílio da Babilônia, grande
parte do povo judeu falava outras línguas. Os judeus da Babilônia falavam o
aramaico, e os do Egito falavam o grego durante o período helenístico. Mesmo na
Palestina havia regiões, como a Galiléia e a planície costeira, em que os judeus
falavam o aramaico e o grego. O hebraico falado prevaleceu somente na Judéia e
em algumas regiões um pouco mais ao sul, próximas à cidade de Hebron. Este
hebraico estava longe de ser a linguagem da Bíblia. Era a linguagem que
atualmente denominamos de hebraico mishnaico ou a língua dos Sábios. Quando,
nas guerras de 66-70 (destruição de Jerusalém) e de Bar-Kohba (131-134), a
Judéia foi arrasada e o remanescente dos habitantes judeus, inclusive os
sábios, foi se estabelecer na planície costeira e na Galiléia, o som do
hebraico falado cessou e os imigrantes foram aos po ucos adotando o aramaico.
Os judeus, entretanto, através de todos os períodos do Exílio (70 E.C. a
1948), nunca deixaram de ler e escrever hebraico. Uma vasta literatura foi se
acumulando nesses períodos, incluindo livros de sabedoria religiosa, filosofia,
ciência, assim como de leve entretenimento, poesia religiosa e secular, peças
teatrais, livros de viagens e obras históricas. Houve mesmo países nos quais os
judeus mantiveram a tradição de escrever suas cartas e documentos particulares
em hebraico. Os judeus da Inglaterra medieval (séc. XII e XIII), por exemplo,
registravam em hebraico até mesmo os títulos referentes a empréstimos feitos a
não judeus.
Muitos falavam o hebraico esporadicamente. Há relatos sobre judeus de
países diferentes, que falavam hebraico quando se encontravam e não dominavam,
em comum, nenhuma outra língua. Os judeus falavam hebraico nas feiras para não
serem entendidos por seus clientes não judeus. Aos sábados, os homens pios
falavam somente hebraico. Com tudo isso ninguém pensou em adotar o hebraico na
linguagem cotidiana. Os judeus são o Povo do Livro; que importância poderia ter
a conversação diária diante da língua do Livro?
Naquela época, na Idade Média, a língua ainda não era um atributo de
nacionalidade, pois não existiam ainda nações na concepção atual do termo.
Muito tempo depois de os povos da Europa terem iniciado suas lutas pela
independência nacional nos assuntos públicos e governamentais, os judeus ainda não
se consideravam uma nação como outras. Tinham começado a produzir uma
literatura ocidentalizada moderna em hebraico, mas não aspiravam a funções
oficiais para a Língua de Eber, e tampouco lhe haviam definido um lugar em sua
vida, além dos limites religiosos e literários.
No século XIX, o hebraico só era falado em Jerusalém e, em escala menor,
no resto da Palestina. Ali encontravam-se judeus de diversas comunidades: os
aschkenazitas de fala iídiche, os sefarditas de fala árabe ou espanhola, e,
como os judeus da Idade Média, falavam hebraico entre si, pois esta era a única
língua mais ou menos compreensível para todos. Visto que os sefarditas eram
comerciantes e artesãos, os aschkenazitas acabaram adotando a pronúncia
sefardita quando falavam o hebraico nas transações comerciais. Ninguém pensava
nela como língua nacional.
Em 1881, chegou à Palestina um jovem judeu lituano, que adotara o nome
hebraico de Eliezer Bem-Yehuda. Ainda na Europa, tinha concebido a idéia da
nacionalidade judaica, e o hebraico como sua língua oficial. Em 1879, publicou
na revista trimestral Haschahar, de Viena, um artigo em hebraico denominado Uma
Questão Candente. Ali divulgava suas idéias revolucionárias. Ainda em Paris
começou a falar em hebraico. Encontrou judeus da Palestina e com eles aprendeu
a pronúncia sefardita. Ao chegar à Palestina procurou falar hebraico com todas
as pessoas que encontrava, descobrindo que sabiam responder-lhe nesse língua.
Imediatamente após sua chegada, começou a proclamar dois novos
princípios: o hebraico devia ser falado em casa, em família, e devia tornar-se
a língua oficial nas escolas. Ele próprio colocou ambos em prática: ensinou
durante um período, em hebraico, na escola da Alliance Israélite Universelle,
de Jerusalém, e utilizou em casa somente o hebraico. Quando nasceu seu
primogênito, empenhou-se em dar à criança o hebraico como sua primeira língua.
Itamar-Ben-Avi, como foi chamado mais tarde o filho, foi assim a primeira
criança a Ter o hebraico como língua materna.
2 – O Desenvolvimento do Hebraico
Chaim Rabin
Supõe-se, em geral, que o hebraico morreu após a destruição do Segundo
Templo (ano 70 E.C.), passando a servir então, principalmente, como língua das
orações; acredita-se também que, embora alguns livros tenham sido depois
escritos em hebraico, a língua não sofreu acréscimos e permaneceu estagnada.
Este ponto de visto é falho em vários aspectos. Primeiramente, apesar de ser
verdadeiro que o hebraico deixou de ser falado, a atividade literária no
período da diáspora foi imensa. O número de livros escritos neste período (70
E.C. a 1948) atinge dezena de milhares, incluindo alguns volumes bastante
alentados, e cada livro contribuiu com algo para o desenvolvimento da língua,
ao tratar de diferentes temas e problemas. Em segundo lugar, é certamente
errôneo supor que somente línguas faladas se desenvolvem e crescem. Ao
contrário, mesmo nas línguas vivas o enriquecimento do vocabulário se dá,
principalmente, na linguagem escrita. No ca so do hebraico, dezenas de milhares
de palavras foram criadas, no período da diáspora, para designar idéias,
instituições e invenções surgidas naquele decurso de tempo. Além disto, muitas
palavras novas foram criadas, sem qualquer razão externa aparente, já que, em
todos os idiomas, palavras deixam de ser usadas e são substituídas por outras.
O vocabulário criado no período da diáspora não foi até agora totalmente
coletado, pois está disperso em grande número de livros, muitos dos quais
existem só em manuscritos; somente o Dicionário Histórico, que está sendo
atualmente preparado pela Academia da Língua Hebraica, poderá incluir todas
essas riquezas.
Um dicionário do hebraico contemporâneo contém material formado de
várias camadas lingüísticas superpostas. Em suas páginas encontram-se palavras
com mais de três mil anos, algumas criadas há apenas mil anos, e outras que
penetraram na língua bem recentemente. Aparecem todas lado a lado, e em
conjunto formam uma unidade: o vocabulário em uso em nossa geração. O atual
falante hebraico não está consciente de que estas palavras são de diferentes
períodos. Para ele são todas a mesma coisa, ou seja, todas são palavras
hebraicas. No conjunto, não é possível reconhecer pela aparência externa se a
palavra é antiga ou recente. Somente o estudo de livros escritos em diferentes
períodos revelará quando determinado vocábulo começou a Ter curso na língua. Há
alguns dicionários que indicam, até certo ponto, a época em que uma palavra
entrou em uso. Estes são o grande Thesaurus de Ben Yehuda, os dicionários de
Y.Gur, de Y.Kenaani e a Segunda edição de A.Even-Shoschan .
Nas cartas de Tell-El-Amarna, escritas na língua babilônica, antes da
conquista israelita da Palestina, que contêm algumas palavras da língua local,
aprendemos que, no século XIV a.C., tais palavras já tinham o mesmo significado
de hoje; navio, verão, pó, gracioso, muralha, gaiola, tijolo, falta, portão,
campo, agente comercial, cavalo, imposto e mais cerca de quinze outras
palavras, que eram correntes na fala da Palestina. Esta são, portanto, as
primeiras palavras hebraicas atestadas em documento escrito. Subentende-se
naturalmente, que àquela época eram correntes também milhares de outras
palavras dentre as quais, algumas encontradas na Bíblia, mas não mencionadas nas
cartas de Tell-El-Amarna, por falta de oportunidade.
O mesmo se aplica à própria Bíblia. A Bíblia emprega cerca de 8.000
palavras hebraicas diferentes (das quais 2.000 aparecem apenas uma vez), mas
certamente este não era o vocabulário completo disponível para o falante
hebraico no período bíblico. Esse vocabulário atingia, sem dúvida, 30.000 ou
mais vocábulos, mas os autores dos vários livros da Bíblia não tinham motivos
para usar a maioria deles. A Bíblia trata de um número restrito de temas e não
é uma enciclopédia. O número de palavras diferentes nas partes hebraicas na
Mischná, Tosefta, nos Talmudes, e nos Midraschim, que denominamos em conjunto
Hebraico Mischnaico, é muito maior, porque a variedade de temas é maior. É bem
viável que muitas das palavras existentes no Hebraico Mischnaico, eram usadas
no período bíblico, mas não foram empregadas na Bíblia. Uma apalavra encontrada
nas cartas de Tell-El-Amarna, nos dá uma prova disso: é masch-hezet (mó).
Apesar de numericamente pobre, o vocabulário contido na literatura
bíblica é de especial importância para o hebraico atual. Como é sobejamente
sabido, nem todas as palavras de uma língua são usadas com igual freqüência.
Algumas são constantemente empregadas como homem, coisa, casa, fazer, falar;
outras são usadas em ocasiões extremamente raras, embora a média dos que usam o
hebraico como língua nativa esteja familiarizada com seu significado. A
pesquisa científica demonstrou que, em qualquer língua, 1.000 palavras compõem
cerca de 85% de todo o material de um texto médio. Entre essas 1.000 palavras
mais freqüentes em hebraico, 800 são da época bíblica. A lista dos 1.000
vocábulos mais usados, como ensinam os Ulpanim também inclui cerca de 800
palavras hebraicas bíblicas. Assim, a importância do vocabulário bíblico é
desproporcional à sua participação numérica entre os 60.000 ou mais vocábulos
que compõem o hebraico atual.
A análise de textos de jornal demonstrou que 60 a 70% das palavras
usadas nos noticiários comuns são bíblicos, enquanto cerca de 20% são
encontradas somente na literatura mischnaica, e a pequena percentagem restante
é composta de termos de origem medieval e invenções modernas. Uma recente
pesquisa numa mostragem de 200.000 palavras correntes, selecionadas ao acaso em
jornais e periódicos, demonstra que entre as palavras que ocorrem mais de cinco
vezes ( o que compõe quase metade do vocabulário inteiro encontrado em tais
textos), as palavras bíblicas formam 61% das ocorrências. A diferença é devida
à inclusão de artigos de fundo, comentários, etc., onde palavras recentemente
criadas ocorrem em maior número.
Cerca de 14.000 palavras do dicionário hebraico provêm da linguagem
mischnaica. Isto não constitui o número total de palavras usadas naquela época,
pois o hebraico mischnaico tem mais de 6.000 palavras em comum com o hebraico
bíblico. Assim, as fontes do hebraico mischnaico (Mischná, Tossefta, partes
hebraicas do Talmude e Midraschim) usam um vocabulário total de cerca de 20.000
palavras.
A edição recente do dicionário de A.Even-Schoschan, de acordo com a
estimativa de seu autor, inclui 6.500 palavras de fontes medievais. Estas
derivam principalmente do Piyut (poesia litúrgica), dos escritos judaicos
medievais da Alemanha e França (principalmente dos comentários de Raschi), e
das traduções feitas no sul da França nos séculos XII a XIV. Estas não são
obviamente todas as palavras que foram criadas durante o longo período que
decorreu entre o Talmude e o renascimento da língua hebraica. Este material
está apenas parcialmente registrado.
Algumas milhares de palavras, de uso comum atualmente, foram tomados do
aramaico talmúdico. A aramaico difere totalmente do hebraico na fonética, e na
gramática mas o constante trato dos judeus com o Talmude Babilônico, e, mais
tarde também com o Zohar, obra mística escrita em aramaico, levou à absorção de
muitas palavras do aramaico, já na Idade Média, com pequenas alterações
formais, para lhes dar aparência de palavras hebraicas. Os estudiosos
responsáveis pela ampliação do vocabulário técnico do hebraico, nos tempos
modernos, têm continuado este processo e palavras desta origem têm passado para
o hebraico constantemente.
O próprio Even Schoschan apresenta perto de 15.000 palavras criadas
desde o renascimento da língua hebraica. Uma vez que este dicionário não contém
termos puramente técnicos, das ciências naturais e da tecnologia, o número de
palavras adicionadas nestes noventa anos é provavelmente muito maior, embora
tenhamos que deduzir uma certa porcentagem de palavras que não obtiveram
aceitação.
O hebraico, como outras línguas, cresceu por camadas, sendo que cada uma
corresponde a um período da língua, e podemos encontrar fortes traços de todas
elas na nossa atual linguagem falada e escrita. Não apenas o vocabulário foi
acrescido, mas cada período também contribuiu com sua parcela de formas
gramaticais e de estruturas sintáticas. Algumas das inovações dos vários
períodos caíram em desuso, mas algumas das palavras e das características
gramaticais que desapareceram foram subseqüentemente recuperadas, e algumas
estão sendo revividas atualmente. No hebraico moderno, todos estes elementos
estão sendo combinados numa nova unidade orgânica. O falante do hebraico em
Israel não está consciente da diferente idade das palavras que usa, assim como
poucos falantes do inglês têm consciência da origem histórica das palavras de
sua língua e da época em que penetraram no inglês.
O interesse em esclarecer estas origens é histórico e intelectual e não
influi sobre o modo como estas palavras e estruturas são usadas. Em Israel há
autores de assuntos lingüísticos que acreditam que a origem de uma palavra deve
influir em matéria de estilo, e, devido ao intenso estudo da Bíblia, e em
alguns círculos, da Literatura Rabínica, a consciência da origem das palavras
torna-se mais viva em israel do que na maioria dos outros países.
Fonte:
RABIN, Chaim. Pequena história da língua hebraica.1.ed. Trad. Rifka
Berezin. São Paulo,
Summus, /1973/. p.11-20.