A inspiração do
Antigo Testamento
Será que a Bíblia
realmente se diz inspirada ou seria essa idéia mera reivindicação feita pelos
crentes a respeito deste livro? Falando mais especificamente, será que cada
parte ou cada livro da Bíblia se diz inspirado? Nos próximos dois capítulos
estaremos tentando responder a essas perguntas. Primeiramente, examinemos a
reivindicação do Antigo Testamento a favor de sua inspiração.
A reivindicação do
Antigo Testamento a favor de sua inspiração
O Antigo Testamento
vindica para si a inspiração divina, com base no fato de se apresentar perante
o povo de Deus e ser por esse povo recebido como pronunciamento profético. Os
livros escritos pelos profetas de Deus eram conservados em lugar sagrado.
Moisés colocara sua lei na arca de Deus (Dt 10.2). Mais tarde, ela seria
mantida no tabernáculo, para ensino das gerações futuras (Dt 6.2). Cada
profeta, depois de Moisés, acrescentou seus escritos sagrados à coleção
existente. Aliás, o segredo da inspiração do Antigo Testamento está na função
profética de seus escritores.
O Antigo Testamento
na qualidade de texto profético
O profeta era o
porta-voz de Deus. As funções do profeta ficam esclarecidas nas várias menções
que a ele se fazem. O profeta era chamado homem de Deus (1Rs 12.22), o que
revela ser ele escolhido por Deus; era chamado servo do Senhor (1Rs 14.18), o
que mostra sua ocupação; mensageiro do Senhor (Is 42.19), o que assinala sua
missão a serviço de Deus; vidente (Is 30.10), o que revela a fonte apocalíptica
de sua verdade; homem do Espírito (Os 9.7), o que demonstra quem o levava a
falar; atalaia (Ez 3.17), o que manifesta sua prontidão em realizar a obra de
Deus. Acima de todas as designações, entretanto, sobressai a de “profeta”, ou
seja, o porta-voz de Deus.
Em razão do próprio
chamado, o profeta era alguém que se sentia como Amos — “Falou o Senhor Deus,
quem não profetizará?” (Am 3.8)— ou como outro profeta, que disse: “… eu não
poderia desobedecer à ordem do Senhor meu Deus, para fazer coisa pequena ou
grande” (Nm 22.18). Assim como Arão havia sido profeta ou porta-voz de Moisés
(Êx 7.1), pois deveria falar “todas as palavras que o Senhor havia dito a
Moisés” (Êx 4.30), assim também os profetas de Deus deveriam falar somente
aquilo que o Senhor lhes ordenasse. Assim dissera Deus aos profetas: “Porei as
minhas palavras na sua boca, e ele lhes falará tudo o que eu lhe ordenar” (Dt
18.18). Além disso: “Nada acrescentareis ao que vos ordeno, e nada diminuireis”
(Dt 4.2). Em suma, profeta era aquele que dava a saber o que Deus lhe havia
revelado.
Os falsos profetas
eram identificados graças às suas profecias falsas e pela falta de confirmação
miraculosa. Assim declara o livro de Deuteronômio: “Quando o tal profeta falar
em nome do Senhor, e o que disse não acontecer nem se realizar, essa palavra
não procede do Senhor” (Dt 18.22). Sempre que se punha em dúvida um profeta ou
se exigia sua confirmação, Deus deixava claro, por meio de milagres, a quem
havia chamado. A terra se fendeu e tragou a Core e aos demais que contestaram a
vocação de Moisés (Nm 26.10). Elias foi exaltado sobre os profetas de Baal,
quando estes pereceram no fogo caído do céu (1Rs 18.38). Até mesmo os magos do
Egito reconheceram os milagres divinos realizados por meio de Moisés, quando
disseram: “… Isto é o dedo de Deus…” (Êx 8.19).
Sempre ficou bem
claro na função do profeta de Deus que o que dizia era palavra da parte de
Deus. Veremos, pois, que as passagens do Antigo Testamento eram consideradas
declarações proféticas. Há várias maneiras de comprovarmos tal enunciado.
As declarações
proféticas eram escritas. Muitas declarações proféticas eram transmitidas
oralmente, mas interessa-nos aqui o fato de que muitas delas eram registradas,
sendo esses registros considerados declarações do próprio Deus. Não há a menor
dúvida de que as palavras escritas de Moisés fossem consideradas dotadas de
autoridade divina. “Não se aparte da tua boca o livro desta lei” (Js l.8) foi a
exortação aos filhos de Israel.
Josué, sucessor de
Moisés, também “escreveu estas palavras no livro da lei de Deus” (Js
24.26). Quando o rei queimou a
primeira mensagem escrita que Jeremias lhe enviara, o Senhor ordenou ao seu
profeta: “Toma ainda outro rolo, e escreve nele todas as palavras que estavam
no primeiro rolo” (Jr 36.28). O profeta Isaías recebeu esta ordem: “Toma um
grande rolo, e escreve nele” (Is 8.1). De modo semelhante, Habacuque recebeu
esta ordem da parte de Deus: “Escreve a visão, e torna-a bem legível sobre
tábuas, para que aquele que a ler, corra com ela” (Hc 2:2).
Os profetas
posteriores usavam os escritos dos profetas que os antecederam considerando-os
Palavra de Deus escrita. Daniel ficou sabendo que o exílio babilônico de seu
povo estava chegando ao fim ao ler a profecia de Jeremias. Assim escreveu o
profeta Daniel: “Eu, Daniel, entendi pelos livros que o número de anos, de que
falou o Senhor ao profeta Jeremias…” (Dn 9.2).
Os escritores do
Antigo Testamento eram profetas. Todos os autores tradicionais do Antigo
Testamento são denominados profetas, seja como título, seja como função. Nem
todos eram profetas por ter estudado para isso, mas todos possuíam o dom da profecia.
Assim confessou Amos: “… Eu não era profeta, nem filho de profeta […]. Mas o
Senhor […] me disse: Vai, profetiza ao meu povo Israel” (Am 7.14,15). Davi, a
quem se atribui a criação de quase metade dos salmos, exercia a função de rei.
No entanto, assim testificou esse rei: “O Espírito do Senhor fala por mim, e a
sua palavra está na minha boca” (2Sm 23.2). O Novo Testamento acertadamente o
denomina profeta (At 2.30). De modo semelhante, o rei Salomão, autor dos livros
de Cântico dos Cânticos, Provérbios e Eclesiastes, teve visões da parte do
Senhor (1Rs 11.9). De acordo com Números 12.6, as visões eram um meio de Deus
mostrar ao povo quem eram seus profetas. Embora Daniel fosse estadista, o
próprio Senhor Jesus o denominou profeta (Mt 24.15).
Moisés, o grande
legislador e libertador de Israel, é denominado profeta (Dt 18.15; Os 12.13).
Josué, sucessor de Moisés, era considerado profeta de Deus (Dt 34:9). Samuel,
Nata e Gade foram profetas que escreveram (1Cr 29.29), da mesma forma que
Isaías, Jeremias, Ezequiel e os doze profetas menores.
Manteve-se um
registro oficial dos escritos proféticos. Comprovadamente não há registros de
escritos não-proféticos conservados a par da compilação sagrada, que teve
início com a lei de Moisés. Parece que houve continuidade de profetas, e cada
um acrescentava seu próprio livro aos escritos proféticos anteriores. Moisés
guardou seus livros ao lado da arca.
A respeito de Josué
está escrito que acrescentou seu livro à compilação existente (Js 24.26).
Seguindo-lhe os passos, Samuel acrescentou suas palavras à compilação
profética, pois a seu respeito está escrito: “E escreveu-O num livro, e o pôs
perante o Senhor” (1Sm 10.25).
Samuel fundou uma
escola de profetas (1Sm 19.20), cujos alunos mais tarde se chamariam “filhos
dos profetas” (2Rs 2.3). Existem inúmeros testemunhos nos livros dás Crônicas
segundo os quais os profetas guardavam com cuidado as histórias. A história de
Davi havia sido escrita pelos profetas Samuel, Nata e Gade (1Cr 29.29). A
história de Salomão foi registrada por Natã, Aías e Ido (2Cr 9.29). O mesmo
aconteceu no caso das histórias de Roboão, de Josafá, de Ezequias, de Manasses
e de outros reis (v. 2Cr 9.29; 12.15; 13.22; 20.34; 33.19; 35.27).
Na época do exílio
babilônico, no século VI a.C, Daniel se referiu à compilação de escritos
proféticos dando-lhe o nome de “livros” (Dn 9.2). De acordo com Ezequiel
(13.9), havia um registro oficial dos verdadeiros profetas de Deus. Todo aquele
que transmitisse profecias falsas era excluído do rol oficial. Só os
verdadeiros profetas de Deus eram oficialmente reconhecidos, e só os escritos
desses profetas eram guardados ao lado dos escritos inspirados. Desde os tempos
mais remotos de que temos registro, todos os 39 livros do Antigo Testamento já
compunham esse acervo de escritos proféticos. Voltaremos a esse assunto
posteriormente (v. caps. 7 e 8).
Reivindicações
específicas do Antigo Testamento a favor de sua inspiração
A inspiração do
Antigo Testamento não se baseia meramente numa análise genérica dessa parte da
Bíblia como escrito profético. Há numerosas reivindicações, nas páginas de cada
livro, especificamente sobre sua origem divina. Examinemos tais reivindicações
de acordo com a divisão aceita atualmente dos livros do Antigo Testamento em
lei, profetas e escritos.
A inspiração da lei
de Moisés. De acordo com Êxodo 20.1: “Então falou Deus todas estas palavras…”.
Essa afirmativa de que Deus falou algo a Moisés se repete dezenas de vezes em
Levítico (e.g., 1.1; 8.9; 11.1). O livro de Números registra incontáveis
vezes:”… o Senhor falou a Moisés…” (e.g., 1.1; 2.1; 4.1). Deuteronômio
acrescenta:”… falou Moisés aos filhos de Israel, conforme tudo o que o Senhor lhe
ordenara a respeito deles…” (1.3).
O resto do Antigo
Testamento declara em uníssono que os livros de Moisés foram outorgados pelo
próprio Deus. Josué impôs imediatamente os livros da lei ao povo de Israel
(1.8). Juízes refere-se aos escritos de Moisés como “mandamentos do Senhor”
(3.4). Samuel reconheceu que Deus havia nomeado a Moisés líder do povo (1Sm
12.6,8). Nas Crônicas, os registros mosaicos são tidos por “livro da lei do
Senhor, dada por intermédio de Moisés” (2Cr 34:14). Daniel diz que a maldição
escrita na lei de Moisés é “o juramento que está escrito na lei de Moisés,
servo de Deus […]. Ele confirmou a sua palavra, que falou contra nós…” (Dn
9.11,12). Até mesmo em Esdras e em Neemias existe o reconhecimento da lei de
Deus dada a Moisés (Ed 6.18; Ne 13.1). O consenso unânime do Antigo Testamento
é que os livros de Moisés foram outorgados pelo próprio Deus.
A inspiração dos
profetas. Segundo a atual divisão do Antigo Testamento, feita pelos judeus, os
livros dos profetas abrangem os antigos profetas (Josué, Juizes, Samuel e Reis)
e os profetas posteriores (Isaías, Jeremias, Ezequiel e os doze profetas
menores). Também esses vindicam autoridade divina. “Josué escreveu estas
palavras no livro da lei de Deus” (Js 24.26). Deus falou aos homens em Juizes
(1.1,2; 6.25) e em Samuel (3.11), que falou e escreveu a todo Israel (4.1, cf.
1Cr 29.29). Os profetas posteriores trazem inúmeras vindicações de inspiração
divina. A célebre expressão “assim diz o Senhor”, com que encetam suas
mensagens, ocorre centenas de vezes. De Isaías até Malaquias, o leitor é
literalmente bombardeado por expressões revelador as da autoridade divina.
Sob o aspecto
cronológico, o Antigo Testamento se encerra nessa seção, conhecida por
profetas, não havendo testemunhos posteriores no Antigo Testamento sobre a
inspiração dessa parte da Bíblia. No entanto, há referências dentro dos
profetas a outros autores proféticos que escreveram seus livros em época
anterior. Daniel considerou o livro de Jeremias inspirado (Dn 9.2). Esdras
reconheceu a autoridade divina de Jeremias (Ed 1.1), bem como a de Ageu e a de
Zacarias (Ed 5.1). Numa passagem de grande importância, Zacarias refere-se à
inspiração divina de Moisés e dos profetas que o precederam, dizendo que seus
escritos eram “palavras que o Senhor dos exércitos enviara pelo seu Espírito
mediante os profetas que nos precederam” (7.12). Esses versículos eliminam toda
dúvida quanto ao fato de os livros que estão na seção das Escrituras judaicas
conhecida como profetas apresentarem ou não a vindicação de inspiração divina.
A inspiração dos
escritos. É provável que o Antigo Testamento originariamente tivesse apenas
duas divisões básicas: a lei e os profetas (v. Cap. 7). Esta última seção seria
dividida posteriormente em profetas e escritos. Talvez essa divisão ocorresse
com base na posição oficial do autor:
era ele profeta por
ocupação ou simplesmente pelo dom divino? Os que fossem profetas pelo dom se
enquadrariam na categoria de escritos. Salmos, o primeiro livro dessa coleção,
fora escrito em grande parte por Davi, que dizia que seus salmos lhe haviam
sido ditados — letra por letra— pelo Espírito (2Sm 23.2). Cântico dos Cânticos,
Provérbios e Eclesiastes tradicionalmente são atribuídos a Salomão; seriam o
registro da sabedoria que lhe fora concedida por Deus (v. 1Rs 3.9,10).
Provérbios contém vindicações específicas de autoridade divina. Eclesiastes
(12.13) e Jó (cap. 38) encerram-se com uma declaração de serem ensino
autorizado. O livro de Daniel baseia-se numa série de visões e sonhos oriundos da
parte de Deus (Dn 2.19; 8.1 etc).
Vários livros deixam
de apresentar vindicação de inspiração divina: Rute, Ester, Cântico dos
Cânticos, Lamentações, Esdras-Neemias e Crônicas. Se o livro de Rute foi
escrito por Samuel, como parte de Juizes, fica sob a vindicação genérica de
escrito profético. De semelhante modo, Lamentações, livro escrito por Jeremias,
é profético. Já vimos que Cântico dos Cânticos é obra derivada da sabedoria
concedida por Deus a Salomão. A tradição judaica atribui Crônicas, Esdras e Neemias
a Esdras, o sacerdote, e a Neemias, que atuou com autoridade profética na
repatriação de Israel, remindo essa nação do cativeiro babilônico (cf. Esdras
10 e Neemias 13). Não se menciona quem escreveu o livro de Ester, talvez para
que se preservasse seu anonimato naquele ambiente pagão e hostil. A visão do
livro de Ester é notadamente judaica; esse livro serve de autoridade escrita
para a celebração da festa judaica do Purim. Tal fato significa vindicação
implícita de autoridade divina.
Em suma, então, quase
todos os livros do Antigo Testamento oferecem alguma vindicação de inspiração
divina. Às vezes se trata de autoridade implícita, mas em geral há uma
declaração explícita do tipo “assim diz o Senhor”. Do início ao fim, a doutrina
da inspiração do Antigo Testamento está solidamente instalada em numerosos
trechos, os quais sustentam sua origem divina.
Apoio do Novo
Testamento à vindicação de inspiração feita pelo Antigo Testamento
Vemos três formas de
abordagem ao examinarmos o ensino do Novo Testamento a respeito da inspiração
do Antigo Testamento. Há as passagens que se referem à autoridade divina do
Antigo Testamento como um todo, genericamente. Há as referências à inspiração
de determinadas partes ou seções do Antigo Testamento. Finalmente, há citações
de livros específicos do cânon judaico.
Referências do Novo
Testamento à inspiração do Antigo Testamento
O Novo Testamento
reconhece a inspiração do Antigo Testamento de muitas maneiras. Às vezes, o
Novo Testamento usa expressões como “Escrituras”, “Palavra de Deus”, “a lei”,
“os profetas”, “a lei e os profetas” e “oráculos de Deus”.
Escrituras é, de
longe, o termo mais comum usado no Novo Testamento em referência ao Antigo. De
acordo com Paulo, “Toda Escritura [Antigo Testamento] é inspirada por Deus”
(2Tm 3.16). Disse Jesus: “A Escritura não pode ser anulada” (Jo 10.35). Com
freqüência o Novo Testamento emprega o plural, Escrituras, para referir-se à
coleção de escritos judaicos dotados de autoridade divina. Respondeu Jesus aos
fariseus: “Nunca lestes nas Escrituras?” (Mt 21.42) e “Errais, não conhecendo
as Escrituras, nem o poder de Deus” (Mt 22.29). O apóstolo Paulo “discutiu com
eles sobre as Escrituras” (At 17.2), e os crentes de Beréia examinavam “cada
dia nas Escrituras” (At 17.11). Nessas e em muitas outras referências, o Novo
Testamento reconhece que o Antigo Testamento como um todo são escritos
inspirados por Deus.
Palavra de Deus é
expressão que aparece menos comumente, mas talvez seja a alusão mais forte à
inspiração divina do Antigo Testamento. Em Marcos 7.13, Jesus acusou os
fariseus de invalidar “a palavra de Deus”, e empregou a expressão como sinônimo
de “Escrituras”. Há numerosas referências à “Palavra de Deus”, embora nem todas
identifiquem com clareza o Antigo Testamento. Paulo argumentou assim: “Não que
a palavra de Deus haja falhado” (Rm 9.6). Em outra passagem ele se refere à sua
recusa em falsificar a palavra de Deus (2Co 4.2). O autor de Hebreus declara
que “a palavra de Deus é viva e eficaz” (Hb 4.12). A declaração do apóstolo
Pedro — “Dele [i.e., de Cristo] dão testemunho todos os profetas” (At 10.43) —
dificilmente se limitaria a algo que não fosse o Antigo Testamento como um
todo, à vista de Lucas 24.27,44. Os textos que com máxima clareza identificam
todo o Antigo Testamento como Palavra de Deus não deixam dúvida quanto à
realidade de sua inspiração divina.
Lei em geral é
palavra que se refere ao Antigo Testamento como forma abreviada de “lei de
Moisés”. A lei representa apenas os cinco primeiros livros das Escrituras
judaicas. No entanto, em certos casos, a palavra lei se aplica a todo o Antigo
Testamento. João 10.34 provavelmente é um desses casos mais significativos.
Visto que a citação é extraída de Salmos 82.6, fica bem claro que não se refere
à lei de Moisés. A palavra “lei” é usada aqui em relação a “Escrituras” e a
“Palavra de Deus”, mostrando que a referência se faz a todo o Antigo
Testamento. Em João 12.34, as pessoas mencionam “a lei”, ainda que em outro
texto Jesus faça referência a “sua [deles] lei” (Jo 15.25), e, em Atos, Paulo a
identifique como “a lei dos judeus” (At 25.8). Paulo introduziu uma citação do
Antigo Testamento com a seguinte frase: “Está escrito na lei” (1Co 14.21). Em
seu famoso sermão do monte, Jesus empregou o termo lei como sinônimo de “lei e
profetas”, expressão que, como vemos, refere-se claramente aos documentos
inspirados por Deus, a que se dá o nome de Antigo Testamento (Mt 5.18).
A lei e os profetas,
ou “Moisés e os profetas”, é o segundo título mais comumente atribuído às
Escrituras judaicas. É designação que ocorre dezenas de vezes no Novo
Testamento. Jesus a usou duas vezes em seu famoso sermão (Mt 5.17; 7.12),
afirmando ter vindo à terra a fim de cumprir “a lei e os profetas”, os quais
jamais haveriam de passar. Lucas 16.16 apresenta “a lei e os profetas” como a
revelação divina até a época de João Batista. Em sua defesa perante Félix,
Paulo declarou ser “a lei e os profetas” todo o conselho de Deus que ele, como
judeu devoto, havia praticado desde sua juventude (At 24.14). Eram “a lei e os
profetas” que eram lidos nas sinagogas (At 13.15), de que a Regra de Ouro, ou o
maior dos mandamentos, é a súmula moral (Mt 7.12).
Os profetas vez por
outra se referia a todo o Antigo Testamento. Visto ser o Antigo Testamento
enunciação profética, não é de surpreender que seja chamado, às vezes, “os
profetas”. O fato de o Antigo Testamento ser chamado às vezes “Escrituras dos
profetas” mostra que se tem em mente um grupo de livros (Mt 26.56). Na verdade,
o título “profetas” é usado em paralelo com a expressão “a lei e os profetas”
(Lc 24.25,27), referindo-se claramente a todo o Antigo Testamento.
Oráculos de Deus sem
dúvida é expressão que tenciona comunicar essa idéia. Aparece duas vezes e
refere-se às Escrituras do Antigo Testamento. Disse Paulo a respeito dos
judeus: “As palavras de Deus lhe foram confiadas”, isto é, aos judeus (Rm 3.2).
Noutra passagem, declara-se a necessidade de alguém “ensinar os princípios
elementares dos oráculos de Deus” (Hb 5.12). Portanto, a palavra escrita do Antigo
Testamento é a Palavra de Deus.
Está escrito é
expressão que se encontra mais de noventa vezes no Novo Testamento. A maior
parte das ocorrências dessa expressão introduz citações específicas, mas
algumas têm aplicação genérica ao Antigo Testamento como um todo. Eis alguns
exemplos desta última aplicação: “Por que, pois, está escrito que o Filho do
homem deve sofrer muito e ser rejeitado?” (Mc 9.12; cf. 14.21). Temos aqui um
resumo do ensino genérico sobre a morte de Cristo no Antigo Testamento, em vez
de uma citação veterotestamentária específica. Lucas 18.31 é uma referência
mais definitiva ainda: “E se cumprirá no Filho do homem tudo o que os profetas
escreveram”. Há outros textos ainda, como “Pois dias de vingança são estes,
para que se cumpram todas as coisas que estão escritas” (Lc 21.22), que dão
apoio à tese segundo a qual os escritos do Antigo Testamento como um todo eram
considerados inspirados por Deus. Prediziam tudo a respeito de Cristo e era
inevitável que se cumprissem.
Para que se cumprissem
as Escrituras é expressão encontrada com muita freqüência no Novo Testamento em
referência ao Antigo Testamento como um todo. Jesus disse “que era necessário
que se cumprisse tudo o que de mim estava escrito” na Lei, nos Profetas e nos
Salmos (Lc 24.44). Em outra ocasião, disse o Senhor: “Não penseis que vim
destruir a lei ou os profetas; não vim para destruí-los, mas para cumpri-los”
(Mt 5.17). Essa fórmula mais de trinta vezes introduz uma citação específica do
Antigo Testamento ou uma referência a essa parte da Bíblia. Sempre se referem à
natureza profética das Escrituras, outorgadas que foram por Deus, e,
necessariamente, devem ser cumpridas.
Referências do Novo
Testamento a seções específicas do Antigo Testamento
O segundo indício no
Novo Testamento de que o Antigo Testamento era considerado inspirado por Deus
são as referências à autoridade de certos trechos das Escrituras hebraicas
(e.g., a lei, os profetas e os escritos).
A lei e os profetas,
como mostramos acima, referem-se a uma divisão do Antigo Testamento em duas
partes. Essa referência ocorre dezenas de vezes no Novo Testamento. Indica
todos os escritos inspirados, desde Moisés até Jesus (Lc 16.16), considerados
Palavra eterna de Deus (Mt 5.18). Além das referências às duas partes em
conjunto, há outras que tratam da lei e dos profetas de modo separado.
A lei em geral
designa os primeiros cinco livros do Antigo Testamento, como ocorre em Mateus
12.5. Às vezes a expressão é “a lei de Moisés” (At 13.39; Hb 12,5). Em outras
passagens esses livros são chamados simplesmente, “Moisés” (2Cor 3.15), “os
livros de Moisés” (Mc 12.26) ou “os livros da lei” (Gl 3.10). Em cada caso
recorre-se à autoridade divina do ensino mosaico. O Pentateuco como um todo era
considerado proveniente de Deus.
Os profetas em geral
identifica a segunda metade do Antigo Testamento (v. Jo 1.45; Lc 18.31).
Empregam-se também as expressões “as escrituras dos profetas” (Mt 26.56) e “o
livro dos profetas” (At 7.42). Nem sempre fica claro que esses títulos se
referem apenas aos livros escritos após o ministério de Moisés, embora às vezes
isso esteja muito bem especificado, como revela a separação dos dois títulos.
No que concerne ao título profetas, exatamente o fato de significar porta-vozes
de Deus revela a inspiração divina dos livros que levam essa designação (2Pe
1.20,21).
Os escritos não é
termo neotestamentário. Trata-se de designação não-bíblica usada para dividir
os escritos proféticos em duas partes: a escrita por profetas profissionais
(“os profetas”) e a escrita por outros tipos de profetas (“os escritos”).
Existe apenas uma alusão no Novo Testamento a uma possível divisão do Antigo
Testamento em três partes. Jesus referiu-se a “tudo o que de mim estava escrito
na lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos” (Lc 24.44). Não ficou claro aqui
se o Senhor estava destacando os Salmos, em vista de seu significado messiânico
especial, como parte da “lei” e dos “profetas”, a que ele se referiu
anteriormente no mesmo capítulo (v. 27), ou o primeiro livro da seção conhecida
agora como “escritos”. Seja qual for o caso, a natureza messiânica e profética
dessa suposta terceira parte do Antigo Testamento faz que ela se destaque como
inspirada por Deus. E, se houver apenas duas seções no cânon do Antigo
Testamento (como veremos no cap. 7), o resto das Escrituras inspiradas já foi
estudado quando tratamos do designativo “profetas”.
Referências do Novo
Testamento a livros específicos do Antigo Testamento
Dos 22 livros do
cânon judaico mencionados por Josefo (Contra Ápion, i, 8), cerca de 18 são
citados no Novo Testamento como autorizados. Não se encontram menções a Juizes,
a Crônicas, a Ester e ao Cântico dos Cânticos, ainda que haja referências a
acontecimentos de Juizes (Hb 11.32) e de Crônicas (Mt 23.35; 2Cr 24.20). Pode
haver uma alusão a Cântico dos Cânticos 4.15 na referência que Jesus faz a
“águas vivas” (Jo 4.10), mas tal citação não seria apoio à autoridade do livro.
De maneira semelhante, a provável referência à Festa do Purim, de Ester 9, em
João 5.1, ou a similaridade entre Apocalipse 11.10 e Ester 9.22 não poderiam
ser consideradas apoio à inspiração de Ester. A autoridade divina investida
sobre o livro de Ester é satisfatoriamente atestada de outra forma (v. cap. 8),
não, todavia, mediante citações do Novo Testamento.
Quase todos os 18
livros restantes do cânon hebraico são citados com autoridade no Novo
Testamento. A criação do homem em Gênesis (1.27) é citada por Jesus em Mateus
19.4,5. O quinto mandamento de Êxodo 20.12 é citado como Escritura em Efésios
6.1. A lei da purificação dos leprosos, registrada em Levítico 14.2-32, é
citada em Mateus 8.4. Números é mencionado indiretamente, pois em 1Coríntios há
referência a acontecimentos registrados naquele livro, referência essa para
admoestação dos cristãos (1Co 10.11). Números 12.7 registra a fidelidade de
Moisés, sendo essa passagem mencionada com autoridade em Hebreus 3.5.
Deuteronômio é um dos livros mais citados do Antigo Testamento. Jesus o
menciona duas vezes em sua tentação (Mt 4.4 e 4.7; cf. Dt 8.3 e 6.16).
Josué recebeu a
promessa da parte de Deus: “… não te deixarei, nem te desampararei” (1.5), a
qual é citada em Hebreus 13.5. Jesus citou o incidente de 1Samuel 21.1-6, em
que Davi comeu os pães da proposição, em apoio à autoridade do Senhor de
exercer certas atividades no dia de sábado. A resposta de Deus a Elias, em
1Reis 19.18 é citada em Romanos 11.4. Esdras-Neemias provavelmente são citados
em João 6.31 (cf. Ne 9.15), ainda que a provisão de “pão do céu” a Israel por
parte de Deus também seja citada em outras passagens (Sl 78.24; 105.40).
A autoridade divina
do livro de Jó (5.12) é demonstrada de modo claro por Paulo: “Gomo está
escrito: Ele apanha os sábios na sua própria astúcia” (1Co 3.19). O livro de
Salmos é outro do Antigo Testamento que se menciona com muita freqüência. Era
um dos favoritos de Jesus. Compare Mateus 21.42 — ” A pedra que os edificadores
rejeitaram, essa se tornou a pedra angular” — com Salmos 118.22. Pedro citou o
salmo 2 em seu sermão do Dia de Pentecostes (At 2.34,35). Hebreus apresenta
abundância de referências aos Salmos; o primeiro capítulo cita os salmos
2,104,45 e 102. Provérbios 3.34 — “Ele escarnece dos escarnecedores, mas dá
graça aos humildes” — é citado com toda clareza em Tiago 4.6. Não existe
citação literal de Eclesiastes, mas algumas passagens contêm doutrinas
aparentemente confiáveis. A declaração de Paulo “Tudo o que o homem semear,
isso também ceifará” (Gl 6.7) é parecida com a de Eclesiastes 11.1. O desafio
para que se evite a luxúria da juventude (2Tm 2.22) reflete Eclesiastes 11.10.
Outros exemplos são os seguintes: a morte é determinada por Deus (Hb 9.27; cf.
Ec 3.2); o amor ao dinheiro é a fonte do mal (1Tm 6.10; cf. Ec 5.10); não
devemos multiplicar palavras vãs em nossas orações (Mt 6.7; cf. Ec 5.2).
Isaías é outro autor
do Antigo Testamento muito citado no Novo. João Batista, em Mateus 3.3,
apresentou Jesus com a citação de Isaías 40,3. Na sinagoga de sua cidade natal,
Jesus leu Isaías 61.1,2: “O Espírito do Senhor está sobre mim” (cf. Lc
4.18,19). Paulo citava Isaías com freqüência (cf. Rm 9.27; At 28.25-28).
Jeremias 31.15 é citado em Mateus 2.17,18, e a nova aliança de Jeremias (cap.
31) é citada duas vezes em Hebreus 8.8 e 10.16. Lamentações, apenso a Jeremias
na relação dos 22 livros da Bíblia hebraica, é mencionado em Mateus 27.30 (cf.
Lm 3.30). Ezequiel é citado em diversas ocasiões no Novo Testamento, ainda que
nenhuma citação seja literal. O ensino de Jesus a respeito do novo nascimento
(Jo 3.5) pode ter-se originado em Ezequiel 36.25,26. Romanos 6.23 declara: “o
salário do pecado é a morte”, o que reflete Ezequiel 18.20: “A alma que pecar,
essa morrerá”. O uso que João faz das quatro criaturas viventes (Ap 4.7)
reflete com clareza Ezequiel 1.10. Daniel é identificado pelo nome no sermão do
monte, pregado por Jesus (Mt 24.15; cf. Dn 9.27; 11.31), e Mateus 21.30 reflete
Daniel 7.13. Os doze profetas menores foram agrupados no Antigo Testamento
hebraico. Há muitas citações desse grupo de escritos. A famosa expressão de
Habacuque “O justo pela sua fé viverá” (Hc 2.4) é mencionada em três ocasiões
no Novo Testamento (Rm 1.17; Gl 3.11; Hb 10.38). Mateus 2.15 cita Oséias 11.1:
“Do Egito chamei a meu filho”.
Diante disso,
verificamos que só Juízes-Rute, Crônicas, Ester e Cântico dos Cânticos deixam
de ser mencionados com clareza no Novo Testamento. No entanto, Juizes apresenta
acontecimentos históricos a que a Novo Testamento faz alusão como autênticos
(Hb 11.32). E talvez Jesus tinha Crônicas em mente ao fazer referência ao
sangue de Zacarias (Mt 23.35). Isso faz que apenas Ester e Cântico dos Cânticos
fiquem sem uma referência explícita no Novo Testamento; e isso ocorreu, sem
dúvida, porque os autores do Novo Testamento não tiveram oportunidade de
mencionar tais livros. Ester é o livro básico da Festa do Purim, e Cântico dos
Cânticos era lido na grande Festa da Páscoa, que reflete a estima que a
comunidade judaica lhe votava.
O Novo Testamento dá
apoio à vindicação de inspiração divina do Antigo Testamento como um todo, de
todas as suas partes e de quase cada um de seus livros. Além disso, há
referências diretas e repletas de autoridade a muitas das grandes
personalidades e dos grandes acontecimentos do Antigo Testamento, dentre os
quais a criação de Adão e de Eva (Mt 19.4), o dilúvio do tempo de Noé (Lc
17.27), o chamado miraculoso de Moisés (Lc 20.37), a miraculosa provisão
material para Israel no deserto (Jo 3.14; 6.49), os milagres de Elias (Lc
4.24,25) e Jonas no ventre do grande peixe (Mt 12.41).
Confirmação ou
conciliação?
A despeito do grande
número de citações do Antigo Testamento e de sua autoridade, houve quem cresse
que nem Jesus, nem os apóstolos confirmaram, de fato, a inspiração e a
confiabilidade dessa parte da Bíblia. Em vez disso, afirmam tais estudiosos, os
autores do Novo Testamento estariam conciliando seus textos às crenças judaicas
aceitas na época. Trata-se de hipótese refinada, mas sem substância. É teoria
que não se coaduna com os fatos das Escrituras, nem com as vindicações de
Cristo. As referências mais numerosas e significativas quanto à genuinidade e à
inspiração divina do Antigo Testamento vêm dos lábios do próprio Jesus, que
jamais demonstrou tendência para a conciliação. A expulsão dos cambistas de
dinheiro de dentro templo (Jo 2.15), a denúncia dos “guias cegos” (Mt 23.16) e
dos “falsos profetas” (Mt 7.15) e a advertência aos mestres em evidência (Jo
3.10) dificilmente seriam tidas como sinais de conciliação.
Aliás, Jesus
repreendia sem rodeios as pessoas que se aferravam às tradições e não à Palavra
de Deus (cf. Mt 15.1-6). Seis vezes num único capítulo (Mt 5), Jesus contrapôs
a verdade a respeito das Escrituras às falsas crenças que haviam surgido e se
expandiam. O Senhor as denunciou assim: “Ouvistes que foi dito” (e não “está
escrito”) e “eu, porém, vos digo”. Jesus não hesitava em declarar “Errais” (Mt
22.29), quando os homens estavam errados. Mas, quando os homens entendiam a
verdade, o Senhor os estimulava, dizendo-lhes: “Respondeste bem” (Lc 10.28). O
ensino de Jesus a respeito da autoridade divina do Antigo Testamento é tão
incondicional e tão isento de transigências, que não se pode rejeitar esse
ensino sem rejeitar as palavras de Jesus. Se alguém não aceitar a autoridade do
Antigo Testamento como Escritura Sagrada, tal pessoa põe em dúvida a
integridade do Salvador. Seja o que for que se diga a respeito da inspiração do
Antigo Testamento, uma coisa é certa: o próprio Antigo Testamento reivindica a
própria inspiração. E o Novo Testamento a confirma de modo maravilhoso.
Extraído do
livro Introdução Bíblica, Norman L.
Geisler & William E. Nix
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